São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Paradoxos da democracia brasileira

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 05/11/95
A primeira impressão que provoca a leitura do novo livro do cientista político José Álvaro Moisés, "Os Brasileiros e a Democracia", é que existe um descompasso entre o enorme esforço analítico que o autor tenta realizar e o resultado algo óbvio a que chega na conclusão da obra.
Moisés (está preocupado em saber) quer saber "em que medida a aceitação generalizada da democracia entre os brasileiros, algo inédito em nossa cultura política, é duradoura".
Para isso, divide seu estudo em duas partes. Na primeira, faz um balanço dos estudos que se ocuparam da transição dos regimes autoritários para o que muitos chamam de "democracias incertas".
Na segunda, Moisés analisa quatro pesquisas de opinião sobre a democracia entre brasileiros, feitas entre 1989 e 1993, a partir de um convênio do Datafolha com o Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) e o Departamento de Ciência Política da USP.
Vistas em conjunto, as pesquisas revelam que a preferência da população pela democracia "está aumentando com o passar do tempo e, só nos últimos quatro anos, cresceu mais de 15 pontos percentuais, alcançando pela primeira vez quase 60% em 1993".
Em que pese a força "científica" dos números, eles não surpreendem. Parecem, pelo contrário, vir ao encontro da intuição bruta de qualquer dona-de-casa.
Mas os problemas do livro de Moisés são outros. Identifico pelo menos dois, e interligados.
Primeiro, uma inflação de referências e citações, como se, num esforço incomum de atualização bibliográfica, cada frase do livro tivesse que estar referendada pelos autores que o precederam, a ponto de não sabermos onde termina o exercício da paráfrase e onde começa a trabalhar a cabeça do autor.
Esse cacoete acadêmico acaba empurrando Moisés para uma espécie de conclusão anêmica, segundo a qual "o paradoxo da legitimidade democrática no Brasil é este: se as elites políticas persistirem em conviver com os vícios políticos herdados do passado, negando-se a realizar as reformas políticas que o país requer para modernizar a política e o Estado, (...) a consequência poderá ser a morte da democracia" (pág. 270).
O cientista político Francisco Weffort, que, assim como Moisés, foi ideólogo do PT, aderiu ao governo FHC e se ocupa há tempos com o tema da democracia, escreveu coisa muito parecida: "As reformas econômicas e sociais permanecem como bandeiras que podem conduzir a novos passos, se os líderes políticos forem capazes de associá-las às demandas de progresso e de igualdade social. Caso contrário, teremos de enfrentar a permanente instabilidade das novas democracias. E, em alguns casos, o risco da regressão autoritária" ("Qual Democracia?", Cia. das Letras, 1992, pág. 119).
Mais do que um lugar-comum (Fernando Henrique já falava, na mesma direção, em necessidade de "democratização substantiva" em seu livro de 1975, "Autoritarismo e Democratização"), talvez haja um equívoco de fundo nessa aposta partilhada por Weffort e Moisés.
Contra o que dizem, há hoje vários indícios de que o atual governo venha consolidar e até mesmo ampliar a democracia no plano institucional e seja, ao mesmo tempo, incapaz de dar um único passo para minimizar a "tragédia social", à mostra de todos em cada esquina de uma cidade como São Paulo.
Se for assim, o "paradoxo democrático" a que se refere Moisés deixa de ser um paradoxo. É antes mais uma das muitas figuras da nossa modernização contraditória, onde ganho institucional e avanço social não costumam caminhar de par, como fomos habituados a pensar seguindo o molde europeu.
Sem levar em conta que o progresso no Brasil não se fez contra o atraso, mas à custa dele, repondo-o não como resíduo, mas como combustível da nossa modernização, vamos continuar alimentando a ilusão de que estamos nos tornando de fato muito civilizados.
Não deixa de ser engraçado que a situação hoje não esteja muito distante daquela descrita por Silvio Romero em... 1897. Dizia ele: "Como cópia, como arremedo, como pastiche para inglês ver, não há povo que tenha melhor constituição no papel..., tudo melhor... no papel. A realidade é horrível".

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