São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Um filósofo que o ocidente adora

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Talvez não seja temerário afirmar que Spinoza foi o mais querido dos grandes filósofos ocidentais. Poetas e escritores, como, por exemplo, Machado de Assis, lhe dedicaram loas e até sonetos. Jorge Luis Borges morreu lamentando-se de não tê-lo lido há mais tempo e com maior frequência. Romain Rolland o seguiu como um cão na adolescência. Goethe se manteve recluso durante meses para estudar a "Ética" em paz, e nela encontrou "apaziguamento" para as suas paixões e "uma visão ampla e livre sobre o mundo físico e moral".
Spinoza, no entanto, começou desagradando. Por suas idéias sobre Deus e a natureza irritou a comunidade judaica de Amsterdã, que o expulsou de seu rebanho. Filho de ibéricos foragidos durante a Inquisição (seu prenome original era Benedict, e sua mãe, portuguesa, chamava-se Ana Débora), bebeu a princípio nas águas de Descartes, de cujo dualismo acabaria discordando radicalmente. Tudo é uno -inclusive, argumentariam seus discípulos da psicanálise, o corpo e a psique. Há quase 50 anos, Walter Bernard aproximou Freud de Spinoza. Dra. Nise refaz a conexão, puxando a brasa para a sardinha de Jung, para quem psique e matéria são dois diferentes aspectos de uma e mesma coisa.
Na "Ética", publicada em 1677 e organizada num estilo geométrico derivado dos "Elementos" euclidianos, Spinoza lançou as bases do seu panteísmo, ao mesmo tempo místico e racionalista. Seus conceitos quase causaram vertigens na jovem Nise da Silveira, que nem depois de abraçar o socialismo deixou de ser, ela própria, uma cristã no melhor sentido que a expressão pode ter. O que Spinoza recomendou em outro texto ("curar aqueles que se acham doentes em seu entendimento por meio de um espírito de doçura e paciência, segundo o exemplo do Senhor Cristo, nosso mestre maior"), ela seguiu à risca em seu centro de psicoterapia.
Em suas cartas, dra. Nise se comporta como discípula e amiga, recapitulando filigranas do pensamento spinoziano e até se referindo a exegetas brasileiros da obra do destinatário, como se do além o filósofo pudesse ter tomado conhecimento da existência e dos textos de Farias Brito e outros. O tom geral é de assombro e êxtase.
Mas, como ninguém é perfeito, nem mesmo Spinoza, a certa altura a discípula aponta o que chama de "fissuras negras na brancura do cristal". Spinoza gostava de se distrair atiçando brigas de aranhas e jogando moscas em suas teias, crueldade imperdoável para a zoófila dra. Nise, igualmente célebre por suas brigas contra uma série de barbaridades cometidas com os animais, das carrocinhas de cachorro à Farra do Boi.
Com essas brigas, aliás, ela pretende encher um dos capítulos de seu próximo livro, uma autobiografia disfarçada, mesclando trivialidades de sua vida com as atividades que a celebrizaram por toda parte. Disfarçada porque o gênero não é do seu agrado. "Toda biografia é mentirosa", pondera. A de dra. Nise poderá ser uma exceção. Se o for, será, forçosamente, uma hagiografia.
(SA)

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