São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Cuba abre economia, admite nova burguesia e quer ser tigre do Caribe

FERNANDO RODRIGUES
ENVIADO ESPECIAL A HAVANA (CUBA)

Um documento do Ministério das Finanças e Preços de Cuba revela que a abertura econômica em curso no país está causando "uma redistribuição e concentração de renda em uma minoria da população".
Obtido com exclusividade pela Folha, o documento demonstra que o governo comunista de Cuba adota dois discursos diferentes sobre as reformas no país.
Em público, o Estado comandado por Fidel Castro evita assumir a recondução de Cuba aos hábitos capitalistas. "Queremos o capital, não o capitalismo", diz Fidel.
Já internamente, o retorno ao capitalismo é dado como certo. As consequências dessa abertura da economia são explicitadas no documento do Ministério das Finanças e Preços. A distribuição equânime da renda (as riquezas produzidas pelo país) é um dos pilares de qualquer regime comunista.
Datado de 17 de outubro, o documento menciona a concentração do dinheiro nas mãos de poucos como algo natural. Com sete páginas e redigido em papel reciclado de bagaço de cana, o documento tem o título "Comentários sobre o comportamento da liquidez monetária no mês de setembro de 1995".
Objetivo e com parágrafos curtos, mostra que, desde maio de 94, cubanos fazem mais saques que depósitos nas contas de poupança.
Todo o dinheiro vai para investimentos particulares, flexibilizados no ano passado. A condição é que o empreendimento seja individual ou restrito à família.
Essa nova elite, nos cálculos do governo, deve ter quase 1 milhão de pessoas. Isso equivale a cerca de 10% da população da ilha.
Restaurantes caseiros, liberados em junho passado, já são mais de 1.200 na capital do país, Havana.
A formação dessa burguesia cubana é apenas mais um passo para o desmantelamento do regime comunista que vigora desde que Fidel Castro tomou o poder, em 59.
Medidas estão sendo adotadas para o país caminhar com segurança para o capitalismo. O objetivo de Fidel Castro é manter o que chama de "conquistas sociais" -saúde e educação gratuitas, habitação e comida subsidiadas.
É difícil entender que as mudanças estão acontecendo levando em conta apenas o discurso oficial. Nas ruas das cidades cubanas, outdoors e placas continuam a estampar frases do tipo "ao capitalismo não voltaremos jamais".
Mas novas leis estão sendo aprovadas e tudo muda no país.
Nocauteada pelo fim da União Soviética, em 1991, Cuba praticamente foi à falência. Foi essa crise que começou a empurrar o país para a abertura.
A Folha passou uma semana no maior país-ilha do Caribe, de 23 a 29 de outubro. Os dados coletados sobre a economia cubana dos últimos dez anos, publicados hoje, são em grande parte inéditos. Ajudam a compreender, em números, como foi o auge (até 89/90) e a derrocada do país a partir de 91.
O Produto Interno Bruto cubano (PIB, soma de tudo o que país produz) caiu 34,3% de 89 até 94. Nesse mesmo período, as exportações do país despencaram de US$ 5,3 bilhões para US$ 1,53 bilhão.
Até 1990, Cuba foi beneficiada por uma generosa ajuda soviética. Importava petróleo a preços baixos e reexportava o produto para outros países.
Nunca foram revelados os números exatos desse subsídio soviético. Técnicos do governo cubano estimam que o valor pode ter chegado a US$ 5 bilhões por ano -mais de US$ 500 mil por hora.
Com o fim da URSS, a importância de manter um satélite comunista na porta dos Estados Unidos ficou reduzida a zero. A Rússia cortou o dinheiro fácil.
Em 91, Cuba se viu, da noite para o dia, sem ter para quem vender seus produtos. E sem ter de quem comprar mercadorias. Por isso, ocorreu o baque na economia.
Veio a fome da população, que teve a alimentação racionada. Em seguida, houve a tentativa de êxodo em massa para os EUA. No ano passado, 30 mil cubanos buscaram formas de deixar a ilha.
Também em 94, Fidel Castro enfrentou as primeiras manifestações abertas de protesto contra o regime, nas ruas de Havana. O líder político mais longevo do planeta, há 36 anos no poder, não teve saída: intensificou a abertura.
A Folha entrevistou 32 empresários, economistas e funcionários do governo cubano na semana retrasada. Há três conclusões:
1) É real, apesar de lenta, a abertura da economia cubana;
2) O governo está incentivando a formação de um mercado interno, com o surgimento de pequenos proprietários que formam uma nova elite do país;
3) A intenção é fazer de Cuba uma plataforma de produção para as Américas, tendo como alvo preferencial os países do Caribe.
Para se tornar um tigre do Caribe, a exemplo do que são hoje países como Taiwan e Coréia do Sul no Sudeste Asiático, Cuba tem se esmerado em fazer novas leis.
A legislação mais importante é a 77, publicada na "Gaceta Oficial Extraordinaria" de 6 de setembro. É a que abre completamente o país para investimento estrangeiro.
Agora, qualquer empresa estrangeira pode investir no país. O empreendimento pode ter 100% de capital externo. Lucros podem sair livremente de Cuba. Os únicos setores que ficaram fora dessa abertura são saúde, educação e defesa.
Até a aprovação da lei 77, estrangeiros só podiam associar-se a empresas estatais. O máximo de capital externo permitido em cada empreendimento era de 50%.
A maior característica da nova lei são as brechas que deixa para mais liberalização. Por exemplo, no que diz respeito à contratação dos empregados de uma empresa.
Hoje, todos os empreendimentos em Cuba têm de contratar funcionários por intermédio de uma entidade empregadora do Estado.
Por exemplo, um hotel se instala no país e requisita camareiras e garçons. A entidade empregadora envia os trabalhadores e cobra salário para cada um -pago em dólares pelo estrangeiro. Mas o cubano recebe, do governo, em pesos.
A lei 77 permite exceções nesse tipo de contratação. Há a possibilidade de pagar prêmios, em dólares, diretamente ao trabalhador.
Outra decisão do governo cubano que contribuiu para a reativação da economia foram os mercados agropecuários, no ano passado.
Basicamente, o mercado agropecuário permite a agricultores individuais ou cooperados vender o excedente da produção pelo preço que desejarem. Todos os anos, o governo estipula uma meta de produção para cada propriedade agrícola. O volume acertado é comprado pelo Estado. O que for produzido acima disso pode ser levado para o mercado agropecuário.
Nesses mercados, o agricultor obtém preços mais vantajosos para sua produção. Acumula renda e pode consumir mais na cidade.
"É a decisão mais importante de todo o processo de abertura", diz um dos mais badalados economistas cubanos da atualidade, Luis Gutiérrez Urdaneta, 37, do Centro de Estudos sobre as Américas, instituição cubana financiada pelo governo e por doações externas.
Outra decisão que ajudou a inserir Cuba no mundo capitalista foi a reforma da moeda do país.
Primeiro, o governo de Fidel Castro deixou de colocar na cadeia os cubanos que tinham dólares no bolso. Isso foi em agosto de 93.
Depois, em dezembro do ano passado, lançou o peso convertível. Essa moeda tem paridade com o dólar norte-americano.
No mês passado, surgiram casas de câmbio. Ainda são sete em todo o país. Mas a garantia de poder trocar, oficialmente, pesos por dólares (na verdade, por pesos convertíveis), fez subir a cotação da moeda cubana. Há um ano, US$ 1 comprava até 150 pesos. Na semana passada, a cotação no mercado livre era de US$ 1 para 30 pesos.

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