São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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1º Mundo ou teocracia

Em teoria política, o Poder Judiciário tenderia a ser uma instância mais conservadora, pois cabe aos magistrados julgar de acordo com a lei em vigor ou avançar muito lentamente por meio da jurisprudência. Já o Legislativo, por ser uma espécie de retrato da sociedade e, portanto, de seus atuais anseios e demandas, deveria ser um poder mais inovador e avançado, procurando alterar as leis de acordo com os cambiantes conceitos do que é ou não socialmente admissível.
No Brasil, porém, parece que essa equação se inverteu. Recentemente uma juíza, em corajosa e inovadora sentença, determinou o aborto legal e sem custas de um feto portador de anencefalia (ausência de cérebro), que não teria condições de sobrevivência extra-uterina. Embora fira a letra da lei (de 1940), é uma decisão que parece correta e consonante com as novas técnicas de diagnóstico pré-natal.
Já o Legislativo, que, de acordo com a tendência médica e política internacionais e com protocolos assinados pelo Brasil, deveria há muito ter relaxado as arcaicas exigências da legislação em vigor, pretende agora recuar mais 55 anos e banir o aborto legalizado do país.
A proposta de emenda constitucional pretende incluir o termo "desde a sua concepção" ao caput do artigo 5º, que teria a seguinte redação: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida desde a sua concepção...".
Essa redação tornaria letra morta o artigo 128 do Código Penal, que prevê o aborto legal realizado por médico para os casos em que a gravidez apresenta risco de vida para a mãe ou que resulte de estupro. É bem verdade que, no caso do risco de vida para a mãe, além de a tendência do Congresso ser a de manter o dispositivo, advogados poderiam recorrer a casos de exclusão de criminalidade como estado de necessidade ou legítima defesa.
O fato, porém, é que com a eventual aprovação da emenda o Brasil estará na contramão da história. Em 42, na França ocupada, uma mulher foi guilhotinada pelo crime de aborto, "ato de sabotagem contra o futuro racial da Alemanha". Em 43, o 3º Reich estabeleceu a pena de morte para pessoas que "continuamente prejudicassem a vitalidade do povo alemão". Hoje, cerca de 70% da população mundial vive em países onde o aborto é de alguma forma permitido.
Se a tendência global, principalmente no 1º Mundo, é a de legalização, a aprovação de tal emenda tenderia a levar o Brasil às portas do indesejável clube das teocracias.

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