São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Musa utilitária

FERNANDO NOVAIS
DAS INJÚRIAS, QUE SOFRE, POR TEU BRAÇO

Os ferros soltará, que desafroxa,
Tintos do fresco, gotejado sangue".
Porém, lido desse ponto de vista, o poema decepciona; realmente, a crítica, feroz, é muito limitada, quase pessoal: dirige-se ao mau governante, que descumprindo as leis, tiraniza os povos. Isto é: trata-se de uma crítica dentro do sistema, não uma crítica ao sistema, o que configura uma posição tipicamente reformista. Isto sempre foi muito acentuado pelos vários estudiosos do tema e às vezes relacionado à sua posição pusilânime em face da repressão. Se, por outro lado, contextualizarmos essas ambiguidades no conjunto das manifestações intelectuais (não só literárias) e políticas daquele "momento decisivo" de inflexão, elas -as ambiguidades- ganham relevo e permitem compreender melhor o conjunto das transformações.
Lembremos, de início, no plano do pensamento, que as Luzes tinham várias gradações de intensidade; e os estudos recentes (E. Appolis, B. Plongeron) marcaram muito fortemente uma terceira via, moderada, tentando compor-se com a ortodoxia e predominante, precisamente, nos países católicos, especialmente em Portugal. Recordemos, em seguida, que a segunda metade do século 18 foi, na Europa e na América, no Velho e no Novo Mundo, um período de reformas (o "despotismo esclarecido") e revoluções (as várias insurreições, desde a independência dos Estados Unidos até a grande Revolução Francesa), tendentes ambas a enfrentar a crise estrutural do Antigo Regime. Ora, quando pensamos na Arcádia como nosso processo de integração nas grandes correntes da civilização ocidental, é no conjunto de suas vertentes que devemos pensar. E isso se expressa, a nosso ver, precisamente naquelas ambiguidades: o nosso poeta usando os cânones metropolitanos para expressar uma inquietação própria do seu meio; compondo um poema satírico contra o governo, mas moderando a crítica, contida nos limites do sistema; envolvendo-se na Inconfidência e encolhendo-se diante da devassa.
Pensando nessas articulações, lembramo-nos das observações de Albert Soboul (Introdução aos "Textes Choisis" da "Encyclopédie", Paris, 1962) sobre as estratégias críticas da "bataille des Lumières", os textos mais contundentes escondendo-se em verbetes aparentemente inofensivos; idêntica observação de Yves Benot, relativa à participação de Diderot na "Histoire de Deux Indes", de Raynal. Assim, o despistamento de Gonzaga situa-se na linha de Montesquieu ("Lettres Persanes", 1721), sendo logo seguido pelas "Cartas Marruecas"(1793), de José Cadalso. Doutra parte, na linha moderada de nosso reformista, parece expressar-se a integração na Arcádia lusitana, aspecto exatamente enfatizado na análise de J. Ruedas de la Serra, acima indicada. Pois a Arcádia metropolitana é parte integrante dessa "Aufklãrung catholique" (Plongeron), vertente moderada e característica da Ilustração portuguesa.
Enfim, e para tentar acercar-se ainda mais de nossa posição específica, a moderação do movimento ilustrado parece que era aqui compensada pela situação colonial; havia, como procurei indicar em outro trabalho, como que uma "leitura colonial" que radicalizava os discursos da Ilustração. Assim, os inconfidentes (como se pode ver quando se procede à devassa da devassa) liam muito a obra de Raynal, antes citada; mas não os amplos capítulos sobre a colonização portuguesa (onde aliás se tratava bastante das Minas Gerais) e sim os capítulos sobre a América inglesa. Quer dizer, desinteressavam-se dos trechos sobre sua própria região, que falava de reformas, para atentar para as passagens alhures, que falavam de revolução. Nesse sentido, talvez devêssemos considerar de mais perto os vínculos entre experiência de vida e criação artística, no caso de Tomás Gonzaga e as "Cartas Chilenas", e pensar que a verdadeira "leitura" do poema talvez se chame Inconfidência Mineira.

FERNANDO A. NOVAIS é professor aposentado do departamento de história da USP e autor de "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial"

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