São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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A fortuna crítica da Arcádia

ALCIR PÉCORA

Arcádia: Tradição e Mudança
Jorge Antonio Ruedas de la Serna Edusp, 184 págs. R$ 18,50

Ruedas de la Serna, professor da Universidade Autônoma do México, abre seu livro com a justa observação de que o arcadismo tem despertado pouco interesse na crítica literária brasileira, associado talvez à imagem corrente de artificialidade e bajulação. Nota, com lucidez, certa recusa dessa crítica em vincular os árcades metropolitanos e ultramarinos e propõe-se a restabelecer essa filiação nos três ensaios, quase independentes, que compõem o livro.
O primeiro deles, "Arcádia e Iluminismo", considera que, na Arcádia, não cabe ver apenas evasão, e que seria mais correto reconhecer aí o espírito reformista do despotismo esclarecido, cujo programa básico era o da "regeneração" da monarquia. Nesse contexto, o costume letrado de louvor dos Principais não precisaria ser interpretado negativamente e obrigaria a levar em conta as regras próprias do panegírico, quando o elogio de santos e virtudes propõe um modelo a ser seguido.
Concentrando-se nas idéias de Pedro Antônio Correia Garção (1724-1773), um dos fundadores e principal animador da Arcádia Ulissiponense, e nas de Francisco José Freire, o "Cândido lusitano" (1719-1773), autor da importante "Arte Poética" (1759), Ruedas ressalta o "poder" que os árcades atribuíam aos poetas na "distribuição do patrimônio da glória humana". Prerrogativa, entretanto, que há muito era tópica humanista, de que "Os Lusíadas" dão exemplos contundentes. Ressalta também a exigência que os árcades se faziam, pelo cultivo da crítica sistemática, de proporcionar a "regeneração do gosto", que julgavam deformado pelo cultismo hispanizante; para tanto, era necessária a autonomia do poeta e sua não-submissão ao "vulgo".
Todavia, no esforço de afastar do arcadismo a função de mero eco do poder, é evidente que Ruedas força a mão na nota da reivindicação da liberdade do escritor, não porque não exista, mas porque o seu sentido está balizado por tópicas horacianas, repisadas na península desde o 16. É lembrar, por exemplo, a "Carta XII" dos "Poemas Lusitanos" de Antonio Ferreira dirigida a Diogo Bernardes: "(...) se eu pudesse/ Ser senhor só de mim, eu voaria/ Onde do vulgo mais longe estivesse". Quer dizer, a defesa da liberdade do escritor, aqui, é sobretudo afirmação de seu lugar elevado na hierarquia civil. Fechando o ensaio, Ruedas imagina as "Bucólicas" de Virgílio como modelo da liberdade pensada por Garção, em que, reforçada pela amizade, opõe-se aos excessos da paixão e funda o espaço utópico da Arcádia, primitivo e refinado a um só tempo, refúgio democrático do saber e da arte contra a degradação da cidade.
O segundo ensaio, "A Tradição Arcádica", parte da idéia, aplicada ao século 18 português, de que a Arcádia é centro acadêmico insularizado, com hierarquia rígida e retórica autonomista que se opõe à universidade, na medida em que esta é prolongamento do poder real ou eclesiástico. A sua função seria a de nobilitar a "nova classe burguesa", substituindo a legitimação de sangue pela do conhecimento e da razão.
No Brasil, Ruedas vincula o sucesso dessa literatura de agremiação "à pratica vice-real de promover certames" em comemorações, de modo que "se relaxasse, temporariamente, a rígida estrutura social", suscitando "sentimentos de adesão" à autoridade. A hipótese do relaxamento festivo parece-me sustentar-se mal, quando, de um lado, nos termos do antigo regime, é impossível distinguir a hierarquia de suas formas de representação e, de outro, a efeméride é, por excelência, ocasião de os letrados inscreverem-se na hierarquia do poder.
Passando à análise dos dois poetas em que se detém, Ruedas mostra de modo convincente a filiação das "Liras 11, 53 e 77" da "Marília de Dirceu", de Tomás Antônio Gonzaga (1744-c.1809), ao "Soneto LXI", de Garção, na edição de Azevedo Castro (Roma, 1888). Mas isto não lhe basta. Quer demonstrar, nas pegadas de Antonio Candido, que as convenções pastoris funcionam apenas "ao nível explícito" e que o modelo da "aurea mediocritas", em Gonzaga, é sublimação de uma obsessão pessoal, reposta por exemplo no tema dos bens materiais do pastor. Assim, enquanto Garção reconhece na pobreza o despojamento apropriado ao mundo arcádico perfeito, epicurista na origem, Gonzaga "já não poderá disfarçar sob as convenções da Arcádia" a matéria de cisão subjetiva e de consciência da solidão. Isso explicaria o sentido da figuração onírica em sua poesia, de que o próprio Gonzaga, aliás, não suspeitava: "Não se dava conta de que esses sonhos eram uma necessidade de evasão, para livrar-se das fantasias e das culpas conscientes que o aterrorizavam (...)".
Francamente, este final "mezzo-psicanalítico" parece-me bem desastrado e dá uma orientação duvidosa a todo o estudo. Uma vez valorizado o árcade, no ensaio anterior, através sobretudo do sublime virgiliano, parece tratar-se agora de ressaltar o brasileiro frente ao português. Isto é efetuado, primeiro, por relances de crítica materialista, fazendo a agremiação responder às aspirações da classe média ascendente (em oposição ao aristocratismo ilustrado dos árcades portugueses); depois, por esse "tour de force" de crítica psicológica, em que Gonzaga, na prisão, mal se finge pastor para revelar-se homem só frente ao mundo hostil, "num processo mental que pode desembocar na loucura ou no reforço do superego infantil". No mínimo, caberia discutir-se a consistência dessa "classe média" no seio do regime de ordens do Brasil do século 18. E não seria o caso de imaginar-se alguma mediação entre a biografia de Gonzaga e a lírica de Dirceu? Não se está descartando cedo demais justamente o interesse da convenção arcádica, que caberia demonstrar?
No último ensaio, "A Arcádia em Crise", Ruedas reforça o caráter aristocratizante da Arcádia lisboeta (aqui, quase oposta à supostamente democrática de Virgílio que, no primeiro ensaio, havia sido proposta como seu modelo): ela vai funcionar como "dique da dissolução dos gêneros clássicos", incapazes já de se dar conta dos "novos atores sociais". No Brasil, entretanto, o recurso pastoril do "locus amoenus", associado à beleza da terra natural, é mobilizado para reivindicar igualdade dos locais frente aos europeus: "Música do Parnaso" (1705), "Eustáquidos" (1769), "Geórgicas Brasileiras" (1781) são algumas das composições a tentarem tal empresa. Contudo, observa Ruedas com razão, parte dessa produção apenas é valorizada pela crítica posterior, de matriz romântica e nacionalista, na medida do que tem para oferecer de suposto nativismo, que, entretanto, não fazia parte do seu "horizonte ideológico". É o caso típico, bem lembrado por ele, da crítica anacrônica de Oswald de Andrade, que do Arcadismo mineiro quer extrair "as bases de toda uma nacionalidade literária". Mas não daquela de Sergio Buarque, que diferentemente do que diz Ruedas não "cunha uma fórmula para explicar a aparente contradição". A idéia de que "a expressão (é) européia, posto que já seja americano o sentimento" é de Joaquim Nabuco e não de Sergio.
Mas o mote da crise européia do século 18, lançado por Paul Hazard, faz com que Ruedas reponha a oposição entre árcades portugueses e brasileiros como uma forma de contradição existente no próprio modelo português, quando ocorre a chamada "guerra dos poetas": de um lado, Garção e seu neoclassicismo, leitor de Boileau e Luzán, com repulsa ao popularesco e ao arcaico local, de outro, o padre Francisco Manuel do Nascimento, o "Filinto Elísio" (1734-1819), e o grupo "Ribeira das Naus", aos quais Ruedas agrega Francisco de Pina e Melo (1695-1773), mais Bocage (1765-1805). Estes liam Rousseau e Voltaire (embora, a meu ver, mais os vozeassem que lessem), tinham em Camões seu modelo supremo, estimavam certa rusticidade popular e em geral eram da estirpe dos plebeus e aventureiros. A contradição no modelo também se reinterava com a criação da Academia Real das Ciências, que defendia o interesse particular da literatura portuguesa frente ao modelo clássico universal.
Para Ruedas, tanto na "Ribeira das Naus" quanto na "Academia Real", havia afinidade com os árcades brasileiros, pela sua estima do popular e defesa da nova classe média. Para fechar o esquema, faltava a Ruedas apenas mostrar que Gonzaga não tinha as posições orgulhosas de casta e os preconceitos ostentados pelo Critilo das "Cartas Chilenas", que Sergio Buarque já deixara claros. E aqui, com prudência crítica que não tem no segundo ensaio, quando sai de um poema do Dirceu diretamente para a vida (e, ainda mais, para o inconsciente) de Gonzaga, adverte que há uma prática política em jogo na sátira anônima e que ela tem o papel de conciliar contra o governador até o ódio da antiga aristocracia. Quer dizer, Critilo seria agente de mobilização política e não testemunho direto da personalidade Gonzaga. Muito justo. Mas estranho que aqui Ruedas reconheça que a convenção cumpra seu papel eficaz enquanto pragmática política e não retome o que antes dissera, de que a convenção na "Marília de Dirceu" é fingimento que mal se sustenta frente ao real que se insinua por trás dela. Supõe acaso que só para a prática política, e não para a lírica, vale o efeito engenhoso?
Isto dá bem idéia do maior problema do livro, no mais louvável: costurar coisas demais juntas, contraditórias algumas, em nome de um esquema que ainda tem dificuldade para reconhecer a propriedade intransponível das ficções retóricas nas letras do período. Sem que isso se faça de maneira decidida, permaneceremos romanticamente antiarcádicos.

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