São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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O fardo pós-colonial

INÁ CAMARGO COSTA

Numa sociedade cinicamente classista como a brasileira, ninguém estranha os privilégios concedidos em prisões a portadores de diploma universitário: celas especiais, comodidades de hotelaria e assim por diante, numa espécie de compensação a subalternos de nível superior para o fato de que os membros da classe dominante nem mesmo são presos. Quanto aos demais, recebem a mesma atenção que seus equivalentes em liberdade: ódio de classe, desprezo, violência etc. Este é um exemplo banal das aporias éticas criadas por sociedades como a nossa, que nos colocam tragicomicamente na vanguarda da coreografia ideológica mundial: o que fazer? Dadas as dificuldades estruturais de país pobre, tratar um médico, um professor, um contraventor-advogado da mesma forma que um marginal perigoso ou dar tratamento especial a gente distinta e educada por respeito às diferenças?
Guardadas as devidas proporções, um problema análogo surgiu em metrópoles como Paris, Londres e Nova York com o afluxo do contingente populacional criado pelo fim dos impérios coloniais neste século. São as novas minorias que muito a propósito Edward W. Said chama de pós-coloniais: exilados dos novos regimes resultantes das lutas antiimperialistas, políticos, religiosos, artistas e intelectuais, refugiados, migrantes e outras categorias menos votadas que agora, nas capitais do antigo e do novo império, reivindicam vez e voz.
Edward W. Said apresenta-se como um caso muito especial de descendente de sócios do colonizador: informa ao longo do livro que é árabe-cristão-protestante da Palestina; na infância viajava sem qualquer problema pelo Egito, Líbia, Síria etc.; estudou no Victoria College do Cairo; e hoje, cidadão americano, é professor de literatura comparada na tradicionalíssima e elitista Columbia University. Uma carreira tão bem-sucedida jamais esteve aberta para radicais opositores ao colonizador imperialista, ou para as vítimas em sentido estrito, tanto na matriz quanto na filial. Portanto, o emissor do discurso em "Cultura e Imperialismo" dispõe hoje, como sempre, de um ângulo privilegiado de observação: o dos que têm um pequeno cacife para fruir os benefícios dos dois lados de um conflito, seja ele cultural, de classe, de dominação imperialista ou disputa nacionalista, sem jamais se identificar ou se solidarizar totalmente com alguma das partes. Junto a essas credenciais biográficas, ele também apresenta as teóricas: entre inúmeras outras, é adepto, mas nunca incondicional, da desconstrução, da meta-história, do estruturalismo althusseriano, da teoria foucaultiana dos micropoderes e da gramsciana da hegemonia.
Alimentando a tese de que no conservador, porém liberal, ambiente universitário americano até a desconstrução fica parecendo coisa de esquerda, o eclético livro de Edward W. Said se apresenta como esboço de um projeto político-cultural de arrasar quarteirão: demonstrar as relações entre imperialismo e cultura, perdão, entre cultura e imperialismo, de modo a persuadir o intelectual americano da necessidade do engajamento, na original luta antiimperialista que se trava no coração dos impérios -intelectual, segundo ele, notoriamente alienado das questões públicas relevantes que acabam exploradas pela mídia ou por políticos populistas de plantão.
A inversão dos termos de seu título resultaria em inaceitável teorema de marxistas que teimam em insistir em reducionismos como a precedência das relações de produção e luta de classes. Aliás, classe já é conceito que Said mal admite e quando muito num remoto sentido sociológico. Assim, nem por rigor intelectual se sente obrigado a examinar o imperialismo ajustando as contas com a vasta bibliografia produzida pela centenária tradição marxista, com a qual se relaciona como invasor em território conquistado: ela só serve para pilhagem. De modo que os leitores mais exigentes não devem estranhar a deliberada confusão entre colonialismo e imperialismo, a periodização nebulosa e muito menos a espantosa declaração de que são obscuras as origens desses fenômenos: "É esta a questão que me interessa: dado o movimento inicial, ainda que obscuro em suas origens e motivações, da Europa para o resto do mundo no rumo do imperialismo, de que maneira tal idéia e prática ganharam o caráter denso e sistemático de um empreendimento contínuo, o que se deu na segunda metade do século 19?" (págs.40-41).
Dada a estratégia geral, o livro define dois objetivos táticos: primeiro, demonstrar que o cânon literário vigente nas universidades americanas é preconceituoso, sobretudo por não dar espaço para os Outros (leia-se: multiculturas representadas por árabes como ele, indianos, paquistaneses, africanos, mulheres e assim por diante) e, segundo, que a vida espiritual (e portanto cultural e política) americana só teria a ganhar se o cânon se abrisse para essa multicolorida diversidade, como já o fez a própria universidade. Um dos resultados que ele pode antever, ainda que reconhecendo como problemático: os meios de comunicação, em particular a televisão, deixariam de destilar preconceitos como os que se viram na guerra do Golfo.
Num nível um pouco mais profundo, interessa-lhe ainda, a partir da constatação de que estão superados os pressupostos culturais e políticos que permitiram a Auerbach escrever um livro como "Mimesis", demonstrar que os pressupostos mesmos do cânon (estéticos e literários, ele concorda, mas vinculados à política imperialista, insiste) precisam ser rediscutidos, para se dar espaço, por exemplo, a um romance como "Kim", na sua opinião a obra-prima de Kipling. Já avançando nessa linha de acolhida simpático-crítica do lixo cultural imperialista, propõe uma leitura minuciosa de "Aida", que demandou exaustivas pesquisas para redundar na descoberta de que se trata de ópera encomendada para comemoração oficial de feito colonialista, detalhe aparentemente mais importante que o fato de não ter valor artístico.
Contando com os efeitos da desinformação e do rebaixamento geral do nível, Said realiza façanhas como envolver Carlyle, Camus e outros na trama colonialista, expurgar o trotskismo da biografia política e do pensamento crítico de C.L.R. James, a luta de classes da obra de Franz Fanon, e assim por diante. Com igual confiança, transforma em álibi um conceito como "estrutura de sentimento" de Raymond Williams e encontra apoio em nada menos que "Minima Moralia", de Adorno, para as reivindicações dos exilados pós-coloniais na metrópole: "O modelo geral de Adorno é o que, em outro lugar, ele chama de 'mundo administrado' ou, no que concerne aos dominantes irresistíveis da cultura, a 'indústria da consciência'. Assim, não há apenas a vantagem negativa do refúgio na excentricidade do emigrado; há também o benefício positivo de contestar o sistema, descrevendo-o numa linguagem que escapa aos que já foram subjugados por ele" (pág. 408). É claro que para se candidatar a esse benefício não basta saber por experiência que toda terra é natal, é preciso ainda sentir-se estrangeiro em todo o mundo, como Said aprendeu com um monge saxão.
Diante de tais prodígios cosmopolitas, descendentes do temível Cunhambebe, que na marra aprenderam com os portugueses a gostar de almanaques, mas não fazem salamaleque, e para isso nem ao menos precisaram sair de suas aldeias, talvez não tenham muito mais a oferecer a esse prestigioso debate além do termo de comparação acima proposto. E reservam tacapes e alfanjes para lutas menos inglórias.

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