São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Nos domínios dos Muras

MARTA ROSA AMOROSO

Muhuraida, ou o Triunfo da Fé
Henrique João Wilckens Biblioteca Nacional/UFAM/Governo do Estado do Amazonas, 253 págs. R$ 10,00

Um estranho e injustificado desinteresse por parte da crítica e da imprensa marcou a revelação do poema "Muhuraida, ou o Triunfo da Fé", de Henrique João Wilckens, escrito na Amazônia em 1785. Afinal, com "O Uraguay" (1769), de Basílio da Gama, e "Caramuru" (1781), do Frei Santa Rita Durão, o poema de Wilckens inaugura as letras nacionais e reafirma o indianismo como o tema central daquele momento. A obra de Wilckens teve uma edição portuguesa em 1819, pela Imprensa Régia de Lisboa, mantendo-se, mesmo assim, praticamente desconhecido. Não interessou aos românticos, que fizeram de "O Uraguay" e "Caramuru" bandeiras de uma literatura tipicamente nativa. A explicação que se deu para o descaso pela "Muhuraida" foi sua excessiva historicidade e a ausência de um par romântico do tipo Lindóia e Cacambo em seu enredo, falta esta imperdoável para os poetas românticos (1).
Pois é exatamente na sua historicidade que reside a força do poema de Wilckens, que rende hoje releituras, especialmente para os interessados pela história dos índios no Brasil. Composto em oitava camoniana, o poema compreende seis cantos, num conjunto de 42 páginas. O enredo deste épico é o duelo travado entre a razão iluminista européia e as misteriosas forças nativas da Amazônia. O autor inicia os versos com a lembrança de um sangrento assalto que testemunhara, quando os índios Mura massacram os habitantes da aldeia jesuíta do Abacaxi, no rio Madeira. A ferocidade e a selvageria dos Mura dão o tom do primeiro canto: a prática de escravizar outros índios e submete-los à trabalhos forçados; o costume de violentar as vítimas; o ultraje dos cadáveres. A cidade e as vilas vivem nas trevas, temendo seus ataques. No segundo canto o Mura ouve o Mensageiro Divino, que anuncia a luz que vem da fé. O Lugar de Santo Antonio do Imaripi, no rio Japurá é o cenário do terceiro canto que trata da conversão, tema de outros dois cantos. A epopéia finaliza-se com a conversão dos Mura ao catolicismo, e com o batismo de vinte de suas crianças.
O engenheiro Henrique João Wilckens estava em missão militar na Amazônia, a serviço do consulado pombalino. Chegara em Belém por volta de 1750, integrando a comissão de técnicos estrangeiros e portugueses encarregada do traçado das fronteiras coloniais do Norte. Nunca mais deixou os trópicos, tornando-se um incansável cronista da Amazônia no século 18 e da complexa situação colonial criada pelo convívio do colonizador português com as centenas de etnias indígenas da região.
Os índios do poema são os Mura, população de língua isolada, habitantes tradicionais do rio Madeira (AM) (2). As primeiras notícias sobre eles foram dadas pelos jesuítas, que desde o final do século 17 intentaram -sem êxito- instalar aldeias missionárias em seu território. O confronto direto da sociedade colonial com os Mura se deu na metade do século 18, quando o rio Madeira passou a servir de caminho fluvial para os comboios comerciais que ligavam o Mato Grosso ao Grão-Pará.
Um noticiário de guerra, que elenca os saques e a pirataria cometidos pelos Mura em toda Amazônia constitui a tônica dos documentos do século 18 sobre a população nativa do rio Madeira. Destaca-se deste conjunto a obra de Wilckens por ser altamente reveladora da situação social vivida pelos colonizadores e pela população nativa. Wilckens encarna vários papéis: em 1781, pouco antes de escrever o épico sobre a pacificação dos Mura, relata (3) que, estando em missão de reconhecimento no rio Japurá, encontrou um grupo desses índios. Sob suas ordens seus soldados cercaram e executaram por volta de 15 pessoas, aprisionando 7 crianças e 2 mulheres. Nosso poeta é ao mesmo tempo perseguidor do Mura inimigo da coroa e agente da aproximação e pacificação. Traduz em imagens o que representou este momento para o colonizador português.
Seu poema "Muhuraida" exacerba as imagens corriqueiras que o século 18 produziu sobre o "terrível Mura", criando a possibilidade de uma investigação no plano dos sentimentos profundos e das mentalidades, que dificilmente acessamos pela via da documentação oficial. Utilizando o contraste entre imagens escuras e claras, o poeta constrói dois cenários amazônicos: o bosque e a cidade. O bosque, lugar das trevas, é por excelência o território do gentio bárbaro, da guerrilha e do contingente de índios desconhecidos e ameaçadores. A cidade e a vila, postos avançados da civilização e da polícia na selva amazônica, são o cenário do Mura depois da pacificação.
Algumas imagens produzidas por Wilckens são preciosidades históricas. De todas elas, é especialmente significativa a hipérbole do "Mura Agigantado", metáfora aplicada à geografia do grupo:
"Tal do feroz Muhura agigantado
Costume é certo, invariável uso;
Que desde o rio Madeira, já espalhado
Se vê em distância tal, e tão difuso
Nos rios confluentes, que habitado
Parece só por ele (...)
Em barcos, tão ligeiros, como informes,
Mais temíveis se fazem; mais enormes."
("Muhuraida", Primeiro Canto, pág. 105-107)
O poema transmite a idéia de que ao número real de indivíduos se somavam os milhares que deveriam ocupar os bosques marcados como território mura. Assim, a imagem revela mais do que o temor do colonizador diante do desconhecido, do inimigo intangível habitante dos bosques. Com essa imagem, Wilckens dá conta do deslize semântico que ocorre no período colonial com o etnônimo Mura. Extrapolando os limites de um agrupamento étnico, a palavra "Mura" passa a cobrir a vasta região dominada pelo índio ainda não domesticado. "Mura", então, poderia ser o selvagem distante do colonizador, quer seja pela língua incompreensível que falava, quer seja pela dificuldade que impunha ao contato. "Mura" poderia também ser o nome atribuído aos índios que fugiram do trabalho escravo ou semi-escravo imposto pela administração colonial da Amazônia e ainda em vigor na região, a despeito da Lei das Liberdades dos Índios promulgada em 1755.
A documentação setecentista e as pesquisas recentes de etnologia (4) sobre o grupo nos levam a pensar que a população Mura de certa forma se prestou a este tipo de generalização. Em primeiro lugar, em função de suas especificidades culturais: falavam uma língua isolada, absolutamente distante de tudo o que o ouvido português havia se habituado a escutar nos trópicos, funcionando a língua como um fator de distanciamento. Viviam (e vivem ainda hoje) um tipo de organização social seminômade, sem construções fixas, improvisando acampamentos na praia, ao longo dos rios. Tal concepção de uso do território, de alta circulação, por certo, explica a imensa área atribuída a eles pelo colonizador no século 18 -praticamente toda a Amazônia brasileira.
Em segundo lugar, pela forma que o grupo traduziu em seu código cultural a situação de contato: a instituição da murificação, por exemplo, referida no poema de Wilckens, possibilitava que agregassem tanto inimigos de guerra como outros índios de etnias diversas que passavam a viver com os Mura. Wilckens chama-os apóstatas, que renegavam o batismo e com ele toda a ordem colonial. Notemos que a conversão e pacificação também se dá pela via da murificação: Deus tornado Mura convence seu povo das vantagens da civilização e do comércio.
Confirmando o que Antonio Candido (5) considerou como a vocação profundamente beata do arcadismo brasileiro, a "Muhuraida" constrói uma cosmologia católica. A vida selvagem é comparada ao pecado e as trevas, terreno do Diabo e da irracionalidade, sendo que ausência de razão e improdutividade se confundem na definição da natureza inútil do índio. A razão, por sua vez, é a luz Divina que ensina o caminho do trabalho produtivo e do comércio. A redenção pelo batismo, o abandono do bosque e da vida selvagem garantem ao Mura as dádivas do comércio, da colheita e da pesca produtiva e, por final, da vida eterna. Tal cosmologia reserva, assim, ao índio um único e determinado espaço social: o abandono de sua cultura e o ingresso na ordem colonial como mão-de-obra disciplinada.

NOTAS
1. Treece, David H. "Introdução Crítica à Muhuraida". In: Wilckens, Henrique João, "Muhuraida, ou o Triunfo da Fé". Biblioteca Nacional/Ufam/Governo do Estado do Amazonas, 1993.
2. Permanece ainda hoje na região do rio Madeira uma população estimada de 2.000 índios Mura. Esta cifra inclui o subgrupo Pirahã que se mantém relativamente isolado e monolingue.
3. O Núcleo de História Indígena da USP publicou recentemente a coletânea de documentos "Relatos da Fronteira Amazônica no Século 18: Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilckens", organizada por Nádia Farage & Marta Rosa Amoroso, contendo parte da correspondência de Henrique João Wilckens, um relatório da viagem de exploração do rio Japurá, além de documentos inéditos sobre a história dos Mura.
4. Ver a respeito os trabalhos de etnologia de Marco Antonio Gonçalves, especialmente "O Significado do Nome. Cosmologia e Nominação entre os Pirahã". Rio de Janeiro, Sette Letras, 1993.
5. In: "Formação da Literatura Brasileira". São Paulo, Itatiaia, 1975.

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