São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Um retrato sem brilho

PABLO RUBÉN MARICONDA

Galileu, Uma Vida
James Reston Jr. Tradução: Ivo Korytowski José Olympio, 412 págs. R$ 32,90

Há uma nova demanda editorial, representada por um público interessado em biografias de grandes pensadores e cientistas. Não há nada de errado com essa tendência, baseada em parte na crença de que a leitura da biografia de um cientista tornará mais fácil a compreensão de sua obra ou, pelo menos, a razão pela qual se considera sua contribuição como fundamental. O que o leitor busca é uma compreensão que o torne no mínimo um leigo bem informado. E uma boa biografia é capaz de satisfazer esse desejo, criando no leitor uma empatia com o biografado e permitindo entender o percurso dessa vida individual em suas interações histórico-culturais.
Em grande medida, a dificuldade da biografia reside em ser um gênero literário híbrido. Ela é sempre histórico-literária. Não basta ser escritor, é necessário ser também historiador. E no caso de uma biografia de Galileu, é preciso não só dominar a história econômico-social do período, como também desenvolver um enorme trabalho de história das idéias científicas e filosóficas, ainda mais numa obra que se propõe a procurar "o momento preciso em que a história moderna nasceu", como é o caso de "Galileu, Uma Vida", de James Reston Jr.
Entretanto, o que falta ao texto de Reston -que o leva a confundir-se sobre diferentes aspectos e dimensões da ciência- é exatamente uma contextualização científica e filosófica adequada da obra de Galileu. Por exemplo, ele se refere por duas vezes (págs. 69 e 287) à cosmologia de Ptolomeu, sem perceber que a obra de Ptolomeu é de astronomia matemática, tal como a de Copérnico, e que o problema é da compatibilidade com a cosmologia aristotélica tradicional, que se transforma, estranhamente, no "mito aprovado pela Igreja de um grande sistema estelar de impulso chamado 'primum mobile', e acionado por um anjo de Deus de modo a circundar a Terra a cada 24 horas...".
Além disso, afirma (pág. 284) que a crítica de Galileu à tese de Kepler da influência da Lua nas marés é "surpreendente mas justa". Como a crítica pode ser justa, se a teoria de Kepler é melhor que a teoria de Galileu, que é falsa? Em todos esses pontos o autor deixa transparecer o ponto de vista que preside a sua interpretação histórica: a ciência nasce com Galileu e tudo o que se fez antes, incluindo-se aí Aristóteles, Ptolomeu e toda astronomia grega, não era ciência, isto é, não produzia uma explicação racional dos fenômenos naturais, mas uma mistura confusa de misticismo, ocultismo e religião.
Mas o maior erro provocado pela ausência de contextualização científico-filosófica na biografia em questão está na avaliação que o autor faz da influência de Arquimedes no pensamento de Galileu e no pensamento científico dos séculos 16 e 17. Segundo Reston (págs. 35-36), Galileu tinha Arquimedes como um rival, considerava que sua balança hidrostática proporcionava um método mais preciso que o de Arquimedes para medir a densidade específica dos materiais e "escarnecia de Arquimedes" (pág. 36) quando lecionava a seus alunos particulares. Além de ser totalmente inverídico e não documentado, esse relato denuncia a completa ignorância do autor sobre esse assunto, pois não percebe que a balança de Galileu é um instrumento cuja idealização só se torna possível com base na teoria hidrostática de Arquimedes exposta no famoso tratado "Dos Corpos Flutuantes".
A lente de Reston fica tão distorcida que, depois (págs. 163-171), ao tratar do "Diálogo Acerca das Coisas Que Estão na Água ou Que Nela Se Movem" -que o autor inadvertidamente nomeia "Tratado Sobre os Corpos Flutuantes" (pág. 171)-, ele nem mesmo menciona o fato básico, na polêmica, de que Galileu defende uma posição claramente arquimediana contra a explicação aristotélica do fenômeno da flutuação dos corpos. Essa distorção na avaliação da importância do divino Arquimedes para o desenvolvimento da mecânica talvez seja responsável pela ausência total de discussão acerca da célebre descoberta da lei da queda dos corpos.
A única avaliação que Reston faz da mecânica de Galileu, em diversas passagens e sem grandes justificativas, consiste em atribuir a Galileu a descoberta do princípio de inércia, que será incorporado por Newton à sua dinâmica como primeira lei do movimento. Entretanto, no exame da segunda "Carta Sobre as Manchas Solares", escrita por Galileu em 12 de agosto de 1612, Reston afirma que, ao tentar explicar o deslocamento em movimento uniforme dessas manchas no corpo solar, Galileu "chegou, quase fortuitamente, a uma lei da física pela qual seria eternamente lembrado: o princípio de inércia" (pág. 171). O autor acrescenta então uma citação que enuncia o dito princípio. Mas a citação é retirada do "Diálogo Sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo", que é um texto de 1632. Como se isso não bastasse, o enunciado está equivocado, pois onde se diz "um corpo pesado em uma superfície esférica", deve-se dizer "um corpo pesado em uma superfície plana".
No fundo, a ausência de Arquimedes já denunciava que Reston procurou centrar sua biografia na obra astronômica de Galileu, tomando como foco narrativo a defesa de Copérnico e o processo da inquisição romana contra ele e dispensando totalmente sua obra mecânica, pela qual se estabelece um novo conceito de movimento. Acontece que a mecânica de Galileu é fundamental para se entender sua adesão e defesa de Copérnico. Além disso, o autor parece desconhecer a história da astronomia, não dando o devido valor à obra de Ptolomeu, que representa na verdade uma compilação dos resultados alcançados pelos astrônomos geocentristas gregos. O efeito da tentativa de Reston é devastador para a compreensão da importância científica de Galileu.
Com o seu aparato de interpretação inteiramente desfocado, o autor não consegue mais ver Galileu com relação à tradição ou à inovação. Girolamo Borro, um obscuro professor aristotélico de filosofia em Pisa, passa a ter uma influência decisiva no desenvolvimento do método experimental de Galileu, tendo sugerido a Galileu o famoso experimento da torre de Pisa, que é detalhadamente descrito nas págs. 50-52, embora a crítica historiográfica contemporânea considere que Galileu nunca realizou tal experimento. Por outro lado, Reston exagera no aspecto inovador da obra de Galileu, quando entende (pág. 53) que ele é um precursor do princípio de equivalência de Einstein. Em nenhum lugar do texto o autor apresenta tal princípio nem menciona o princípio da relatividade do movimento que Galileu utilizou para eliminar as objeções mecânicas às hipóteses copernicanas da rotação e translação da Terra. Na falta dessa exposição, o que o autor afirma é dogmático e pouco esclarecedor.
Acrescente-se a tudo isso o fato de o texto de Reston ter um valor literário duvidoso. Abusa do recurso jornalístico de escrever pequenos perfis biográficos dos personagens que contracenam com Galileu. Frequentemente, imagina diálogos em que faz falar Galileu nas passagens de seus próprios textos, livremente associadas sem qualquer contextualização. Esse recurso chega ao extremo no capítulo 12, em que procura expor o processo de composição do "Diálogo Sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo". O resultado é lastimável. Primeiro, porque o leitor não é informado sobre o conteúdo de cada uma das partes dessa obra; depois, porque os diálogos imaginados são uma caricatura dos grandes diálogos de uma das maiores obras da literatura polêmica.
Há ainda duas imprecisões menores. A primeira "Carta Sobre as Manchas Solares" não foi escrita no dia 3 (pág. 171), mas em 4 de maio de 1612. O "Discurso Sobre o Fluxo e Refluxo do Mar" não foi publicado em 1616, mas faz parte da obra póstuma de Galileu e só foi publicado no início de nosso século.
Mais grave, do ponto de vista intelectual e editorial, é a ausência de qualquer referência explícita das fontes das numerosas citações feitas no texto. O livro possui ao final uma seção intitulada "Notas", que é, na verdade, uma relação das fontes utilizadas por capítulo e assuntos tratados nesses capítulos. Ocorre que nas citações não há qualquer marca que permita referir rápida e seguramente a citação à sua fonte. Ora, uma biografia não está obrigada a citar, pois no limite ela pode ser um romance. Entretanto, se ela cita, então deve satisfazer as exigências historiográficas e fornecer correta e agilmente as fontes.
É de se lamentar que, ao invés de "Galileu, Uma Vida", o público leitor brasileiro tenha perdido a ocasião de dispor da tradução de alguma das boas biografias de Galileu. Tanto mais que há biografias para todos os gostos e especialidades. Para citar as três melhores: "Vita di Galileo Galilei", de Antonio Banfi, pela sua contextualização sócio-cultural; "Galileo Galilei", de Ludovico Geymonat, excelente como biografia intelectual; e "Galileo at Work", de Stillman Drake, que é uma biografia científica.

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