São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Arte, história, cidade

VICTOR KNOLL

Arte Moderna
Giulio Carlo Argan Tradução: Denise Bottmann e Frederico Carotti Prefácio: Rodrigo Naves Companhia das Letras, 709 págs. R$ 87,00

Leitura obrigatória para o estudo da evolução das artes visuais dos últimos três séculos, "Arte Moderna", de Giulio Carlo Argan, tem como subtítulo "Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos", que, certamente, deve ser traduzido pelo binômio Revolução Industrial e Pop Art. De fato, tais são os limites que Argan se impôs neste estudo.
A estratégia expositiva lida alternadamente com detidas e pontuais análises de obras e estudos de fôlego sobre períodos, escolas e artistas. Entre as ambições teóricas do trabalho, talvez a mais importante consista no reconhecimento da unidade do arco histórico estudado, confluindo nos tempos de hoje para uma crise da arte ou da atividade artística.
Como discípulo de Lionello Venturi, herdou do mestre o princípio metodológico que procura efetuar a compreensão do fenômeno artístico no interior de seu próprio desenvolvimento, recusando dados ou conceitos alheios ao itinerário da própria arte.
É assim que Argan examina o declínio do artesanato e o aparecimento no horizonte dos tempos modernos da produção industrial. Por outro caminho, Argan indica o fim da arte que Hegel já houvera tematizado. Este ponto de vista é tratado em vários textos e aqui é uma sombra que acompanha o movimento de toda interpretação.
Tal como procedera Hegel, é por força de uma interpretação histórica que a morte da arte se torna visível para a consciência reflexiva. Embora os caminhos sejam diversos, é graças ao reconhecimento do movimento histórico que Hegel anuncia a morte da arte, e Argan, o seu fim: o artesanato cada vez mais extinto e o domínio avassalador da produção industrial promovem o fim da arte, segundo os moldes que a governaram até hoje. Há um traço hegeliano na postura geral de Argan ao atribuir à história o papel decisivo para a compreensão do fenômeno artístico. É preciso que a atualidade se converta em história para ser apreendida reflexivamente. Somente o filtro da história confere valor ao que se apresenta hoje como obra que se pretende dotada do caráter "de arte". Embora submetida a condições materiais, a história da arte está marcada como produção espiritual: expressão da vida religiosa e da coesão das comunidades mediante a representação de seus heróis, de sua paisagem natural, onde sua marca está posta, de seus usos, hábitos e costumes.
Entretanto, impõem-se processos de fabricação, criação e manufatura que ocasionam o eclipse da arte ou, antes, a sua absorção pelos meios industriais de produção e consequente expurgo como valor básico da sociedade.
Já em um texto de 1969, onde opera uma avaliação dos princípios para uma história da arte, Argan se refere à ameaça do fim da arte por outro viés. "É comum ouvir falar, hoje em dia, em morte da arte. Vê-se concretizar-se como uma catástrofe aquilo que, na profecia de Hegel, era uma catarse ou uma apoteose da arte, elevada ao céu da verdade filosófica. Sem sombra de dúvida, na atual condição da cultura e na que se prepara com o advento do poder tecnológico, a eventualidade do fim da arte é uma ameaça. Mas se a arte é, como certamente é, uma das maneiras pelas quais os homens fizeram a história, a qualquer momento a empresa artística podia falir"(1). Fazer a história significa rechaçar o instinto e assumir o empreendimento civilizatório. A história mostra que a atividade artística está marcada pela luta contra a violência e a destruição. "Não se luta sem correr o risco da morte. Aqueles a quem chamamos grandes mestres e que, na história da arte, elevaram-se a uma grandeza heróica são os que mais arriscaram e que enfrentaram mais próxima e decididamente o risco final da morte da arte."
Outro ponto que merece atenção é a relação que Argan estabelece entre arte e cidade, a qual desempenha papel fundamental em sua concepção da atividade artística e seus produtos. Conforme já indicara Francastel, convém lembrar que a arquitetura renascentista já estava presente na pintura antes de aparecer no cenário urbano das cidades italianas dos séculos 15 e 16.
Ainda que submetida a circunstâncias materiais e nelas participando de um jogo de forças -conforme já indicamos-, a arte é um produto espiritual. No interior das tensões materiais da vida social, a arte é a manifestação exemplar da mão humana. Dessa maneira, dá-se a sua compreensão -ou, talvez, interpretação- no plano espiritual: como uma atividade do Espírito Absoluto, para usar a nomenclatura hegeliana, onde e quando a contradição entre sujeito e objeto encontra-se apaziguada. É nestes termos que a arte, ao mesmo tempo sujeito e objeto, pode ser vista como expressão da cidade.
Seja em virtude da situação agonizante da arte, seja pelos compromissos com a cidade, compreende-se que Argan em seus textos conceda tanto à arquitetura como ao urbanismo atenção especial e lhes consagre amplo lugar, bem como lhes confira um caráter essencial.
Os capítulos de "Arte Moderna" têm suas diretrizes marcadas pela exploração da arquitetura e do urbanismo, o que vale dizer, da cidade. De fato, a história da arte como história da cidade ocupa lugar nuclear dentro das concepções de Argan: há um vínculo estreito entre arte e cidade. Com isso, temos outro ponto de método. A história da arte deve ser tomada como o evolver de manifestações ligadas ao artesanato e que constituem um cruzamento espaço-tempo que é a própria cidade. Com Argan a história da arte ganha esse novo sentido. Os fenômenos artísticos não são mais vistos como decorrentes dos fatos históricos -tomados como condição explicativa sobretudo no plano social-, mas constitutivos da história ao lado dos outros âmbitos da prática humana.
Não há explicação que possa se sustentar sem o apoio da interpretação estritamente estética: o exame das relações formais da obra, do reconhecimento da organização do espaço plástico, das determinações estilísticas, da exploração temática. A leitura da obra -a sua compreensão- deve prevalecer sobre a aplicação "de fora" de categorias forjadas para esclarecer outra realidade -o objeto ou os interesses de outras ciências como a sociologia ou a psicologia. O sentido da arte como produto da mão humana se esclarece no interior da história, porém a história da arte -seu sentido, seus vínculos internos e seu compromisso com outros âmbitos da cultura- somente pode ser estabelecida por meio da análise de suas obras. Tal é a outra faceta da postura metodológica de Argan que nesse trabalho está exemplarmente assumida. Assim, conforme já assinalamos, combina o ensaio que monta o palco histórico com a análise pontual de obras de arte.
Quanto ao movimento do texto, "A Época do Funcionalismo", embora penúltimo capítulo, pode ser visto como o coração da interpretação de Argan, onde fica assegurada a sua unidade. Por isso, com aparente desequilíbrio expositivo, esse capítulo ocupa a terça parte da obra e as outras duas, os restantes seis capítulos.
O capítulo 7 está estruturado pela divisão do mundo em dois blocos ideológicos anteriores à queda do muro. Parece-nos que aí reside o seu ponto fraco. Argan não soube conservar a lição hegeliana. Acreditou no presente. Argan caiu na armadilha da história.
Logo de início observa que desde a segunda metade do século 19 e ao longo do 20, os americanos se apropriaram não apenas da cultura européia, mas também de sua arte; empenhados na conquista da supremacia mundial, a relação entre o presente e o passado, tão forte para o europeu, não os comovia. Argan está falando da Pop Art e da "action painting". Assim, "a arte, para o novo mundo, era a criação imediata de fatos estéticos, como a ciência de fatos científicos: uma maneira diferente, mas completa, de fazer a experiência do real" (pág. 509). Tal é a crítica e conclui: "a arte dita 'conceitual', que recusa qualquer função ou utilidade mundana, e que se dobra sobre si mesma... é um típico indício do extremo a que chegara a crise" (pág. 509).
Talvez pudéssemos sugerir que a posição de Argan aponta para este âmbito da arte contemporânea como uma nova versão da "arte pela arte". Agora não como ideário ou baliza da criação de uma escola ou movimento, mas como o fazer efetivo da arte. Insinua que se dá um descolamento da história.
Por outro lado, lembrando as relações essenciais entre arte e cidade, o olhar de Argan é algo míope, por exemplo, em relação a Chicago que, sem dúvida, está entre as cidades mais ricas em obras arquitetônicas.
De qualquer modo, além da acuidade de suas análises pontuais de obras, seguramente o ponto alto do trabalho, suas interpretações são instigantes e mesmo o simplismo do capítulo 7 oferta matéria para a reflexão.

NOTA
1. Argan, G. C. - "História da Arte como História da Cidade", tradução de Pier Luigi Cabra, Martins Fontes, São Paulo, 1992, pág. 71. O texto citado em seguida encontra-se no mesmo lugar.

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