São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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A paixão da Itália

JORGE COLI

Vida de Rossini
Stendhal Tradução: Maria Lúcia Machado Organização, apresentação e notas: Lorenzo Mammi Companhia das Letras, 524 págs. R$ 29,00

Para tanto atrair anglo-saxões, germânicos e franceses, que poderes detinha a Itália do século 19? Stendhal foi um desses apaixonados, e dos mais ardorosos. Não frequentava a Itália como turista, na contemplação exterior dos monumentos e das obras. Queria era impregnar-se de um certo espírito, de um modo de viver que lhe parecia vibrar numa plenitude ausente em outros lugares.
A França de seu tempo atravessara momentos empolgantes: a Revolução, a epopéia militar do império napoleônico, uma violenta e vigorosa renovação social. Com a restauração monárquica, com o retorno dos Bourbon, imobilizara-se, temerosa, cautelosa. Perdera a seiva apaixonada, que Stendhal descobria na Itália. Esta sim lhe parecia sua pátria espiritual que, por comparação, tornava ainda mais mesquinha a verdadeira.
As "Crônicas Italianas" ou "Roma, Nápoles, Florença" ou "A Cartuxa de Parma" são frutos desse amor. Como o é a "Vida de Rossini". Compreende-se: acima de todas as artes, Stendhal amava a ópera. Era capaz de, numa decisão repentina, partir de Brescia, enfrentar estradas infames numa infame diligência, arriscando-se a assaltos noturnos, para chegar a tempo de assistir a um espetáculo em Como. Mais ainda: a ópera e a Itália fundiam-se, para ele, num mesmo fascínio. Eram ambas portadoras de paixão, a paixão que lhe faltava tanto em França. Rossini encarnava a paixão moderna. Ele inventara uma organização sonora que, antes de ser cômica ou trágica, era enérgica; que, ao invés de falar ao intelecto ou aos sentidos, dirigia-se ao ânimo, revigorando-o.
A "Vida de Rossini" é, em verdade, uma falsa biografia. O imenso gênio de Stendhal foge aos gêneros, incapaz que era de obedecer a uma estrutura previamente determinada. Seus romances fluem no prazer de um improviso que se desenrola longamente, através do inesperado, para estacarem de modo brusco -por vezes sem conclusão alguma, como em "Lucien Leuwen"-, apenas porque o autor decidiu por um ponto final por fastio ou cansaço. Tanto melhor. A "Vida de Rossini" possui a variedade e o estímulo da conversa que se desdobra, prenhe de idéias e de empenhos, rica de associações inteligentes, recheada de anedotas, livres dos rigores acadêmicos, pedantes e pernósticos.
O livro é publicado em 1824 -Stendhal tem 41 anos e Rossini, 32. Stendhal está ainda por escrever os seus romances, Rossini já é reconhecido como um dos gênios de seu tempo e -com exceção de "Guilherme Tell"- já compôs o essencial de sua obra. A juventude e a exuberância da ópera rossiniana provocam a pena entusiasmada de Stendhal, mas também a sua angústia. Ele sente, em Rossini, uma espontaneidade fecunda que a época necessita, mas parece-lhe também que, a partir de um certo momento, o compositor cerceia esses impulsos, buscando caminhos menos ardentes. Stendhal não ouviu e não quer ouvir -porque sem dúvida teme não gostar- a "Semíramis", que acusa de germanismo! É verdade, porém, que Rossini está mudando e que "Guilherme Tell" abrirá novos caminhos para a música do futuro, distanciados da veemência imediata, própria ao "Tancredi" e ao "Barbeiro".
"O que faz da música o mais arrebatador dos prazeres da alma (...) é que nela se incorpora um prazer físico extremamente vivo" (1). Stendhal embarcara na militância romântica: seu "Racine e Shakespeare" é um dos manifestos da nova sensibilidade. Concebe, entretanto, um romantismo singular. Não privilegia o sentimento ou o sentimentalismo. Reivindica antes uma relação com o mundo que, deixando de passar apenas pela inteligência ou pelo discurso racional, elege o prazer como forma de conhecimento, ou melhor, como o modo capaz de dar sentido principal às existências. A "Vida de Rossini" discorre sobre o prazer, sobre a volúpia, genes que fizeram nascer a civilização mediterrânea, única e verdadeira: "Tudo é doce volúpia e beleza comovente nas cercanias das margens sombreadas do Mediterrâneo. Reconhece-se sem dificuldade o berço da civilização do mundo. Foi ali que, há 40 séculos, os homens perceberam, pela primeira vez, que havia prazer em deixar de ser ferozes. A doce volúpia civilizou-os; reconheceram que mais valia amar que matar...".
"Eu vi meu século -ele é, antes de tudo, mentiroso". Stendhal tem horror ao esnobismo que constata nos franceses seus contemporâneos e à imaginação sentimental que percebe nos alemães. Abomina as elucubrações teóricas -a das "almas secas", que "tomam miseravelmente o difícil pelo bel". Isto pela boa razão de que, para ele, tudo isso são substitutos factícios e ridículos da vitalidade que possuem os italianos -e Rossini-, herdeiros legítimos de uma cultura mediterrânea nada clássica. Nietzsche não sentiria melhor.
Mais do que em qualquer texto seu, Stendhal insiste na oposição entre julgamento e gozo, o primeiro como entrave para o segundo. Ele almeja essa "plenitude do gozo", esses "corações inundados de prazer" dos italianos, que agradeciam a Rossini com ovações delirantes, "ao deus que lhes acaba de prodigalizar a felicidade". Mas ele próprio, Stendhal, não consegue evitar o recuo, e assinala a relação complexa que mantêm entre si a atitude, o sentimento, e sua representação -questão para ele crucial. Por isso se atarda tanto na descrição dos cantores -que percebe como atores capazes de canto dramático. Encontra-se aqui seu repetido fascínio por essa frágil fronteira, a do verdadeiro sentir e a de sua manifestação externa, cuja linha servirá de condutor para tantos de seus personagens.
Não há dúvida que a "Vida de Rossini" é um livro chave dentro da obra de Stendhal. Mas, além disso, ele nos traz um Rossini de formidável vivacidade. Nossos tempos voltaram a fazer justiça ao "cisne de Pesaro" (2) (ou ao "macaco de Pesaro", como zombava o próprio compositor, fazendo um trocadilho com as palavras francesas "cygne" e "singe"). Rossini deixou de ser apenas o autor do "Barbeiro" e, para nossa maior felicidade, os teatros e as gravadoras fazem com que "Cenerentola", "Moise", "Armida", "Otello", "Tancredi", e tantas outras obras-primas, sejam apresentadas com uma frequência que se torna já rotineira. Marilyn Horne, Lucia Valentini-Terrani, Cecilia Bartoli são dignas herdeiras das Colbran, das Pasta e das Supervia, e hoje supremas intérpretes dessas partituras furiosamente difíceis. É assim que o livro de Stendhal torna-se porta de acesso privilegiada a esse universo que ressurge.
Indispensável pela qualidade de pensamento e de escrita, bom companheiro pelo diálogo vivo e estimulante, ele nos vem, além de tudo, numa edição muito sedutora. Volume bonito, rico de ótimas ilustrações; boa tradução, acompanhada por um aparelho impecável de notas e por um ensaio introdutório propriamente notável, escrito por Lorenzo Mammi, ele comporta ainda: "Notas de Um Diletante", do próprio Stendhal, "Em Defesa de Rossini", de Geltrude Righetti-Giorgi, que assinala as incorreções da desenvolta biografia, e o essencial diálogo entre Rossini e Wagner, transcrito por Edmond Michotte. Tudo isto pinta um retrato de Rossini que apaixonará qualquer leitor e que deveria inquietar também os compositores de hoje, tão elevados e doutos, capazes de grandes e elaboradas belezas, mas a quem escapam o vigor, a volúpia e o riso.

NOTAS
1. Todas as citações são extraídas da "Vida de Rossini".
2. Apelido honroso que os contemporâneos de Rossini lhe davam, por analogia com o "cisne de Mântua", que era o poeta da antiguidade latina, Virgílio.

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