São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Memórias danificadas

FRANCISCO ALEMBERT

Memórias de um Stalinista
Hércules Corrêa Opera Nostra, 122 págs. R$ 13,00
O Imaginário Vigiado
Dênis de Moraes José Olympio, 248 págs. R$ 20,90
História do Marxismo no Brasil, vol. 1
Daniel Aarão Reis Filho, João Quartim de Moraes (orgs.) Paz e Terra, 208 págs. R$ 16,70
História do Marxismo no Brasil, vol. 2
João Quartim de Moraes (org.) Editora da Unicamp, 246 págs. R$ 18,50

Em um esforço coletivo, embora não concatenado, alguns intelectuais de esquerda retomam a reflexão sobre o combalido legado marxista, visando repensar os impasses, e o eventual futuro, do socialismo entre nós. Inseridas nesse processo, algumas publicações recentes apresentam diferentes possibilidades de rever, a partir da História, essa trajetória. Tomadas em conjunto, exemplificam três modos de se escrever a história do movimento socialista, com seus limites e dificuldades: o memorialístico, o estudo acadêmico tradicional e a coletânea de estudos.
O modo memorialístico tem as restrições, e também as vantagens, de um estudo visceralmente comprometido com seu objeto. O estudo acadêmico pode se ver aprisionado nas modas recentes que decretam, por força do novo figurino, a necessidade de entremear teorias dentro da retórica pós-tudo hoje imperante. A coletânea traz na diversidade das contribuições sua força, mostrando como o pensamento em torno do marxismo anda se movimentando em frentes diversificadas. Por outro lado, a completa falta de homogeneidade revela os impasses nos quais o pensamento de esquerda se vê enredado.
O livro de memórias de Hércules Corrêa, destacado dirigente do PCB (Partido Comunista Brasileiro) durante décadas, inscreve-se na onda de revisionismos por parte de comunistas históricos. Mas, antes de tudo, trata-se de um livro de uma tristeza incomum. O bom humor e a linguagem coloquial, que se esforça por aplacar a formação doutrinária rígida (expressa lapidarmente no título), são acompanhados por um discurso de despedida de um projeto político que era também um projeto de vida. Narrando fatos pitorescos de sua vida e sua formação ortodoxa, Corrêa nos oferece um instantâneo de uma geração de comunistas hoje literalmente estraçalhada, em grande parte, pela derrocada de seus pressupostos políticos. Entre arrependimentos e "autocríticas", acompanhamos o trágico processo de formação da mentalidade autoritária comunista, atada, entre outras coisas, a uma certa "cultura da clandestinidade" que teria inviabilizado o diálogo com a nova sociedade civil.
O teor dessa mentalidade autoritária, e sua consequente incapacidade para dialogar abertamente com a sociedade, tem no livro de Dênis de Moraes uma tentativa de explicação. Analisando o embotamento crítico das consciências comunistas pela imposição do realismo socialista como paradigma da arte e da cultura, o autor tenta explicar as condições que pariram aquele imaginário stalinista que Corrêa quer exumar. Originalmente tese de doutorado defendida na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o trabalho se ressente de uma certa rotina acadêmica: Gramsci (via Carlos Nelson Coutinho), Marx, Foucault, Freud, Guattari, Baudrillard, teoria da comunicação (via Moniz Bandeira), tudo se mistura como em uma colcha de retalhos. Cada capítulo invariavelmente parte do resumo de alguma ligeira concepção de um desses (e de outros ainda) pensadores. O que vem depois pouco ou nada tem a ver com os "princípios teóricos" sumariamente expostos. Os dois primeiros capítulos exemplificam esse impasse.
Mas a pesquisa atenta de jornais e panfletos da imprensa comunista, mais algumas intuições, pode salvar o livro do mero ecletismo acadêmico. Nos seus melhores momentos, o texto nos ajuda a compreender a estruturação de um discurso exclusivista que não pondera, que rejeita a reflexão e a mediação. Assim, nos permite compreender os mecanismos mentais da formação stalinista, o culto à ordem e à disciplina, a recusa a ouvir o outro. Entendemos de que maneira o sectarismo realista-socialista afastou o comunismo brasileiro da arte moderna e das vanguardas não apenas artísticas, mas também daqueles grupos ligados aos setores de esquerda antidogmáticos, por exemplo, tratando de difamar figuras representativas do que viria a ser a base do pensamento radical uspiano, como Sérgio Milliet, Antonio Candido, Sérgio Buarque.
Os dois volumes de "História do Marxismo no Brasil" perfazem certamente o mais ambicioso e profícuo dos projetos até agora elaborados para uma revisão da trajetória do pensamento socialista entre nós. O primeiro volume foi publicado em 1991, o segundo surge agora, sendo que o organizador nos promete para breve um terceiro e último, que deverá tratar das visões marxistas sobre o Brasil. Embora estejamos ainda no meio do projeto, é possível tecer comentários sobre alguns textos e sobre os rumos tomados.
Seguindo a releitura crítica do papel do stalinismo na esquerda brasileira, cabe ressaltar os dois textos (nos volumes 1 e 2) do organizador do projeto, João Quartim de Moraes. Trata-se de uma defesa apaixonada, corajosa e extemporânea do legado stalinista, mais preocupada em recuperar algum possível estatuto intelectual para as parcas obras do "pai dos povos" do que com as consequências de seu modelo autoritário de socialismo.
Neste percurso inglório chega a lances duvidosos, como defender, contra Deutscher, que Stalin não era monoglota, já que além do russo dominaria o georgiano, sua língua materna... (v. 2., pág. 191). Neste mesmo texto, afirma que a idéia de que o caminho para o socialismo no Brasil passaria necessariamente por uma "etapa democrática e nacional" é uma herança positiva do pensamento de Stalin. Pode-se observar, entretanto, que esse também era o projeto de intelectuais socialistas radicalmente antistalinistas, como Antonio Candido ou Paulo Emilio. Tais idiossincrasias não impedem que o autor, num momento iluminado, faça uma interessante leitura da obra de Jorge Amado, tomada como o mais bem acabado produto da teoria "bolchevique" do PCB dos anos 40.
Noutros textos, os temas se sobrepõem, fazendo com que diferentes autores circulem em torno de um mesmo objeto. É o caso dos estudos que abrem os dois livros. O primeiro, de autoria de Evaristo de Moraes Filho ("A Proto-história do Marxismo no Brasil"), não é mais do que um resumo de trabalhos anteriores do autor, nos quais ele faz uma descrição dos primeiros divulgadores do marxismo entre nós. O trabalho de Claudio Batalha ("A Difusão do Marxismo e os Socialistas Brasileiros na Virada do Século 19"), no segundo volume, procura compreender o mesmo problema por meio de uma contextualização mais rigorosa, num texto um tanto confuso.
No volume 2, o capítulo assinado por Guido Mantega é breve mas funciona bastante bem como um resumo de seus trabalhos sobre a história da economia política no Brasil. Vale ressaltar também o ensaio "Trotsky e o Brasil", de autoria de Dainis Karepovs, José Castilho Marques Neto e Michael Lõwy, que aponta uma linha de oposição, mesmo dentro do livro (muito marcado pela herança do PCB), ao discurso pecebista. O texto vale também como um apanhado resumido do importante trabalho de Castilho Neto sobre Mário Pedrosa.
Talvez o mais significativo dos trabalhos do volume que ora vem à luz seja o ensaio de Paulo Arantes sobre o primeiro momento da filosofia de José Arthur Giannotti. Trata-se, na verdade, de um capítulo de seu livro "Um Departamento Francês de Ultramar", onde trata das consequências, para a cultura universitária de esquerda, da confluência uspiana de uma certa metodologia filosófica francesa com o marxismo ocidental. Deste casamento inesperado surgiria o caminho mais significativo para a aclimatação do pensamento marxista antidogmático entre nós. Na trilha de Antonio Candido, Fernando Novaes e, sobretudo, Roberto Schwarz (ausentes dos volumes até agora publicados) operou-se o que o autor chama de o "desasnar" da inteligência de esquerda brasileira. Longe dos partidos e sindicatos, mas muito perto dos textos e da crítica mais atualizada, esses e outros pensadores lançaram as bases da possibilidade de se repensar as estruturas da sociedade brasileira por intermédio do marxismo. No corpo da obra, o ensaio de Arantes é o que mais se afasta das querelas ligadas à tradição do PCB, enfocando aquilo que há de mais vivo para se pensar o marxismo para o futuro.
Agrupando trabalhos de professores de áreas e formações diferentes, os dois volumes compõem um bom painel da pesquisa sobre o marxismo entre nós. Entretanto, as propostas muitas vezes acabam por se justapor, ao mesmo tempo que lacunas consideráveis vão-se formando. A ausência, até agora, de uma apreciação de fôlego da obra de Caio Prado Jr., por exemplo, é a maior delas. Nesse sentido, a "História do Marxismo no Brasil" se revela mais um amontoado de trabalhos do que o resultado de um projeto coletivo planificado. Isto demonstra, melhor do que os próprios textos, o quanto os estudos marxistas estão confusos e danificados. Ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de se intensificarem as pesquisas e a constituição de grupos e projetos de análise que dêem conta de escrever e repensar a história das idéias marxistas, sua viabilidade e perspectivas, de maneira ainda mais aprofundada.

Texto Anterior: A paixão da Itália
Próximo Texto: Pós-moderno, por que não?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.