São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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"Eu sou família!"

VINICIUS DANTAS

O Salão e a Selva. Uma biografia Ilustrada de Oswald de Andrade
Maria Eugenia Boaventura Ex-Libris/Editora da Unicamp, 286 págs. R$ 39,00
E m algum lugar Mário de Andrade escreveu que Oswald era "o melhor espectador de si mesmo", talvez para assinalar o quanto sua obra possuía de autobiografia, mas biografia com senso do espetacular, à qual não faltavam os elementos de mistificação, sarcasmo, blague e autocrítica também. Tendemos hoje a subestimar estes componentes mais existenciais, preferindo eleger no modernista aqueles elementos que demarcam o vanguardismo liberado de fidelidade à representação. Todavia se deixarmos que sua própria mão nos conduza vamos constatar que a aprendizagem do mundo e do modernismo significou para ele a derrota de uma literatura desligada de qualquer referência, de uma literatura esteticista e cabotina a não mais poder, e que, justamente por tais características, não desafiava em nada o oficialismo e o conservadorismo de uma Belle Époque mortiça.
"Ser literato" -diz-nos nas suas memórias- "não constituía, portanto, no seio de minha gente, vergonha nenhuma nem compromisso algum com a existência em carne viva que tem fatalmente que ser a de quem escreve". A grande obra modernista de Oswald para renovar o compromisso com a existência em carne viva teve de utilizar sua própria vida como bucha de canhão. Se este for o ângulo, vem logo à tona a importância de se conhecer mais e melhor sua biografia, o que, como já se notou, aumenta o poder de revelação da própria criação oswaldiana.
"Selvas e Salões" foi o título de um rodapé de crítica de Tristão de Athayde, publicado em 1925. Talvez Oswald tenha involuntariamente se lembrado dele quando decidiu chamar "O Salão e a Selva" ao volume de suas memórias que tratava dos anos 20. É este o título que Maria Eugenia Boaventura pediu emprestado para batizar sua biografia ilustrada de Oswald de Andrade. O volume que agora nos chega vem com deslumbrante projeto gráfico de Frederico Nasser, deslumbrante não só pela intimidade que a contemplação de expressões e atitudes dos figurantes da história de vida mais conhecida e repetida da literatura brasileira faculta, como pela qualidade e raridade do material iconográfico.
Oswald se dá a ver de todas as maneiras e posturas possíveis, permitindo que se acompanhe em detalhe o cuidado às vezes cômico que ele dedicava à aparência como também a própria construção do modernismo como aparência. A iconografia é um livro à parte, de muita beleza, traduzindo o quanto cada gesto tinha para Oswald o sentido de revelar e incrementar um sentimento novo da vida numa época em que difundir o gosto e a sensibilidade modernas no acanhamento brasileiro tinha algo de uma pedagogia heróica. Aí nessa espécie de álbum grandão de família está documentado um pouco da pré-história da sensibilidade contemporânea que, comparado a seu estado atual, fica ainda mais bonito.
Dos estudiosos que se dedicaram a essa especialidade, Boaventura foi quem reuniu a documentação mais pessoal e considerável sobre seu personagem, até agora desconhecida, da qual ela não tira porém, a meu modo de ver, o melhor partido, principalmente por falta de instrumento literário. Às vezes o leitor tem a impressão de que a narrativa que acompanha o filme paralelo é um borrão à espera de ser passado a limpo e corrigido, tantas são as incorreções, atrapalhações de data e simultaneísmos relapsos, ao qual porém os editores se apressaram em dar uma embalagem luxuosa. Ademais, o fato de a história modernista, a de Oswald em particular, andar tão mastigada (é sua quinta ou sexta versão), exigiria uma definição de ponto de vista. Embora apresente o volume como um "perfil intelectual", Boaventura na verdade contrapõe sempre à imagem pública do modernista, do profeta da antropofagia, do militante comunista e do guerreiro contristado a face mais reservada e doméstica do homem sem profissão.
"O Salão e a Selva" narra mais da "petite histoire" doméstica, amorosa e burguesa do que qualquer outra obra, nem deixa faltar os detalhes indiscretos e picantes, atendendo à bisbilhotice do leitor contemporâneo. De fato sente-se às vezes que a autora pretendeu subverter a hagiografia vanguardista, enfocando com mais ênfase a vida privada e familiar, como se esta desmistificasse a face pública do escritor. É o que explica o arrolamento prosaico dos meios de sobrevivência de Oswald, seus negócios encalacrados, seu entra-e-sai de agiotas e gabinetes de políticos, seus projetos imobiliários mirabolantes sempre ao fim pendurados em hipotecas e empréstimos extorsivos, sobretudo a partir de 1930.
Tal propósito desmistificador se dispersa em revelações curiosas mas confusas que, a meu ver, não contribuem para uma avaliação mais justa da sua posição social e literária na sociedade do tempo. Talvez por isso se sinta tão pouco no texto o fascínio desse "ser complexo e estranho que é Oswald de Andrade" (nas palavras de Antonio Candido), cujo lirismo, humor e irreverência aqui quase não entram, ao passo que pipocam informações. É óbvio que a vida do dilapidador emérito de uma grande fortuna libera facilmente escabrosidades e fatos divertidos, ainda mais se este é um grande escritor e uma figura inesquecível -o fundamental pois estaria em utilizar esse material para a compreensão de sua invenção formal ou até de sua personalidade.
O empertigamento da seriedade investigativa que distancia se justificaria se em contrapartida fosse esboçada alguma interpretação dos fatos, das obras e das várias fases de seu objeto de estudo. Sem esta, muitos dados novos se dispersam e soçobram no curso de uma enumeração fria de fatualidades imprecisas que se multiplificam sem adensar a narrativa. Temos muita informação fatual decapitada num arrolamento protocolar que tem pressa de largá-la logo porque na frase seguinte tem mais a revelar, mesmo que as frases fiquem sem sequência ou com ressonância baixa. Aí, nesse momento, o leitor pára, olha as ilustrações e respira a história tácita dessas expressões pungentes antes de tomar coragem para remergulhar em redação tão descuidada e descosida.
A técnica geralmente empregada pela autora é uma espécie de camuflagem do estilo de Oswald. Quase sempre estamos lendo algum destroço de passagens oswaldianas, alforriadas das aspas porém. Essa camuflagem ao invés de fazê-la brilhar oculta a poesia do estilo oswaldiano, com suas imagens, seu alvoroço, seu inesperado, revertendo-se numa sensaboria. Veja-se um exemplo à pág. 84: "Esse período europeu para Oswald pareceu bem equilibrado. Uma salutar vocação para o trabalho regulava os seus dias". A segunda frase foi tirada literalmente de um artigo de resposta a Tristão de Athayde. Se não me engano, era piadística no original e visava convencer o alto moralismo do crítico católico de que nosso autor não vivia na Europa uma vida de ócio e degradação própria a um vanguardista. Tudo são ambiguidades no original, porém sua instrumentalização no relato de Boaventura tem a sem-gracice de afiançar que Oswald era um trabalhador incansável mesmo nas horas de lazer.
Uma das novidades dessa biografia está na natureza dos materiais a que recorre, principalmente rascunhos, papelada de família, correspondência, de preferência às passagens dos livros mais famosos. Se esta solução demonstra a excepcionalidade de seu material, Boaventura não valoriza a fonte e faz questão de ser sempre lacônica na indicação; nunca se sabe onde o documento está, se ela teve acesso direto a ele, quem o transmitiu, qual o seu estado de inacabamento, etc etc. Tudo indica que Boaventura trabalha o seu assunto do ângulo-Nonê (o filho mais velho do escritor), contando para tanto com depoimentos valiosíssimos de Adelaide e Julieta Guerrini de Andrade (nora e ex, respectivamente). Tamanha é a confiança em suas fontes que ela dispensou de utilizar, por exemplo, trabalhos básicos sobre o assunto como os de Mário da Silva Brito e a coletânea de Augusto de Campos sobre Pagu. Se a pretensão de sua reconstituição, como ela própria diz, é de servir de "apoio à pesquisa de estudiosos da obra e da vida de um dos mais importantes modernistas", seu enorme e magnífico esforço de documentar-se corre o risco de ficar sob o signo do "ouvi dizer"... (1)
O modernismo é valor literário, intelectual, social ou comportamental? Não dá para saber. Oswald se converte então numa figura meramente idiossincrásica, cuja insaciabilidade quase autista não pára em meio a episódios descascados de vibração histórica. O que significa afinal seu experimento poético e intelectual? Apesar de Boaventura ficar colada à literalidade das citações, para ressaltar a fidedignidade exclusivista de sua pesquisa, a gente não percebe o que ela partilha em relação ao que relata -seja em termos humanos ou literários. Boaventura relaciona-se apaticamente com a poesia natural dessa vida, excetuado o período comunista que lhe desagrada francamente. Em geral ela não se solidariza com o movimento que é a regra do estilo e da existência oswaldianos, cujo romanesco intrínseco tem o condão de quebrar a indiferença.
Estamos por outro lado muito longe do tradicionalismo simpático da biografia brasileira mais convencional, de um R. Magalhães Jr. ou de um Raimundo de Menezes, em que a literatura é idealizada como uma forma de sociabilidade superior, a qual vai sendo deturpada e destruída pela modernização -razão para que se cultuasse o heroísmo provinciano da boemia, a vida grupal e a amizade.

Continua à pág. Especial-5

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