São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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"Eu sou família"

VINÍCIUS DANTAS

Aqui não -o relato não investe na psicologia da personalidade nem toma a época, o grupo social ou literário como explicação ou valor sentimental ou artístico. Creio que houve certa modéstia da autora em presumir que o dar informação é por princípio superior ao contar um caso, quando este pelo menos exige o exercício da narração e obriga o narrador a consultar a própria experiência. Por conseguinte, a narrativa desse "livro de imagens", castigada pelo registro protocolar a que falta calor testumunhal e gosto analítico, corre burocraticamente.
Depois que Mario da Silva Brito tratou das relações entre vida e obra (em "As Metamorfoses de Oswald de Andrade"), Maria Augusta Fonseca da humanidade generosa e muito inocente de Oswald (em "Oswald de Andrade - Biografia"), Aracy Amaral da trajetória exagerada do ricaço modernista (em "Tarsila - Sua Obra e Seu Tempo") não custava explicar qual a importância hoje de um ângulo mais doméstico para focalizar o itinerário oswaldiano, sobretudo para que as diferenças ficassem ressaltadas (inclusive sua pertinência para um escritor que, gabando-se, dizia: "Eu sou família!"). Menos que um ponto de vista, porém, essa opção pareceu-me antes uma estratégia para evitar os episódios enfrentados por outros autores e já banalizados pela mídia. Tanto é verdade que a autora se debate para não redundar, esquivando episódios bem conhecidos: o decadentista encontro com Isadora, a morte de d. Inês, os momentos dramáticos da luta política ao lado de Pagu são postos de lado. Não fica claro se Boaventura não lhes dá relevo porque os considera lendários ou desimportantes; se este fosse o caso caberia marcar com nitidez seu ponto de vista. Igualmente não atribui às viagens a importância que Aracy Amaral lhes atribuiu (a qual por assim dizer usou o ir-e-vir cosmopolita para periodizar uma evolução artística), deixando meio embaralhada a cronologia trepidante delas.
O essencial da arte oswaldiana, agregando companheiros, acordando talentos, desconcertando os amigos, provocando o meio, está no estudo das reações, o que nutre seu senso de provocação vanguardista. Oswald faz para ver o efeito -descartar a dramatização desse espetáculo e deixar de reconstituir a posição das partes implicadas, inclusive suas motivações, também não parece boa estratégia. Uma biografia deveria antes cumprir o papel inestimável de identificar referências, especificando o contexto e o público a que se dirigiam as intervenções dele, sem o que, por causa do laconismo fulgurante de seu estilo, o sentido da obra fica embaçado (embaçamento que, acredito, foi decisivo para a constituição do mito Oswald nas últimas décadas). Boaventura preferiu simular intimidade doméstica a tratá-lo como alguém que não é nosso contemporâneo, recusando o ganho de compreensibilidade que adviria de uma opção mais contextualista. Tal recusa embaça por exemplo o capítulo dos anos 20 que dá a impressão de que tudo girava ao redor de Oswald e todo mundo era modernista, até mesmo os figurões mais carcomidos da República Velha com os quais ele confraternizava. O difícil, como se vê, está na especificação das posições artísticas e sociais do grupo e na fluidez de fronteiras de classe numa cidade bombardeada por todo tipo de influência, crescendo caoticamente e vocacionada para toda espécie de moderno meio torto.
Referindo-se ao namoro complicado de Tarsila e Oswald, Boaventura comenta: "Socialmente, levando-se em conta o provincianismo e o conservadorismo que regia a vida paulistana, a situação dos dois era bastante embaraçosa, mesmo entre o meio intelectual". A frase se dissolve no livro porque o que vimos antes é o oposto: é um rapazinho carregar uma francesa livre e determinada para dentro de uma casa de velhos doentiamente religiosos, onde por sinal foi muito bem recebida, é uma normalista erotizar lindamente um bando de literatos mocinhos, é a atração perversíssima de um bacharel babão por uma menina de quinze anos que envolve meio mundo (até Coelho Neto!) etc. Que há conservadorismo e provincianismo não há dúvida, mas também existia uma margem de tolerância e liberdade insuspeita, tudo dentro de casa e muito família. Quanto à vida amorosa, espinha dorsal deste "monógamo em série", vale lembrar que Oswald se configura em função de cada uma de suas mulheres, que correspondem a estações claras de sua vida intelectual e literária. Portanto, o tratamento da vida amorosa deveria focalizar não só o que Oswald deveu às mulheres mas sobretudo de que modo cada amor celebra a inteireza do espírito de uma época.
A partir de 1934 o relato se concentra mais e mais na vida doméstica e finanças. Ainda assim me pareceu insuficientemente explicada a famigerada ruína de 1929. A impressão que os fatos agora nos deixam é a de que a Revolução de 30 alterou os rituais dos favores nas altas esferas do poder, inclusive porque o grupo perrepista ao qual Oswald estivera ligado perdera o controle do andamento dos negócios -ver pág. 203. Tão frustros foram seus intentos de restaurar o trânsito com o poder que ele se tornou uma caricatura de bajulador dos poderosos -acusação aliás que lhe foi feita em 1952 por Jamil Almansur Haddad, e com a qual a biógrafa parece concordar (está subentendida na pág. 176). Ela também deixa entrever de que modo no fim da vida era oportunista e volúvel a política literária de Oswald, determinada antes pelo interesse de suas cavações (pág. 244). São aspectos que poderiam servir para explicar o dito ostracismo que ele amargou e sua falta de prestígio, geralmente atribuídos, e outra vez aqui, à aura convencional de confeiteiro maldito (de biscoitos finos).
É preciso dizer alguma coisa sobre a questão política que domina a segunda metade do livro. Boaventura diagnostica no ingresso de Oswald ao Partido Comunista "um sentimento de vingança" contra a sociedade que o derrotara socialmente, uma espécie de vingança de "empresário falido" (págs. 157 e 177). Todavia do ponto de vista literário e político a coisa tem muitos outros lados. O comunismo não só atendia profundamente a generosidade, a necessidade de liberdade e lirismo que caracterizavam sua personalidade, como era uma das poucas brechas na nova coalizão das classes dominantes que restava depois de 30 para seu anarquismo, propiciando-lhe uma dose enorme de sonho, poesia e internacionalismo, da qual seu teatro deu um testemunho notável.
A promessa da revolução traduzida em pitoresco e beleza se desenha nesse verso que continua o modernismo: "Seremos felizes como os tico-ticos". É verdade que a militância comunista e o primarismo teórico e cultural do PCB (Partido Comunista Brasileiro) obrigou-o a um esquematismo demagógico, embora jamais Oswald estivesse "completamente ensandecido e contaminado pelas idéias obreiristas do Partido", como ela diz à pág. 200. Ao contrário, Oswald tentou sem resultado demonstrar a afinidade do que ele fizera no Salão com aquilo que se fazia na Praça, aprofundando a congenialidade da criação moderna, espiritualmente antiburguesa, com a revolução -inclusive ensinando imaginação de subversão e alegria antipuritana a um partido bastante atrasado. Ele no entanto estava só, não possuía nem a platéia popular nem a da classe média, depois de desabado o salão grande-burguês do café. É o que se entrevê nas duas reações suscitadas pelo seu teatro: o moralismo proletário não admite um espetáculo com palavrões por ferir a inocência popular e o moralismo burguês se agasta com o excesso de sexo, divagação poética e falta de enredo e ação. Por fim, não custa lembrar que enquanto Pagu enfrentou a estrutura interna do PCB tornando-se uma socialista independente, Oswald se alinhou até 1945 na mística prestista, descambando no populismo trabalhista e sem caráter do PRT (sic).

NOTA
1. Entre as preciosas e inexploradas novidades divulgadas por "O Salão e a Selva" estão a quantidade de detalhes sobre o caso Carmen Lydia; a existência de um diário da Cyclone, dado como perdido, posterior a "O Perfeito Cozinheiro"; a existência de um "In Memoriam" da Cyclone, "Diário de Exílio - Cartas ao meu Amor", que ficou incompleto; o primeiro projeto das "Memórias Sentimentais", que remonta a 1912, concebido como um "livro de imagens" a ser iluminado por Correia Dias; o projeto em meados de 1923, na França, da revista "Latina", cujo ecletismo demonstra a confusão modernista de Oswald até então; a inexistência de "Pau-Brasil" no catálogo da "Au Sans Pareil", o que denuncia, a meu ver, a natureza das relações dos paulistas com a vanguarda francesa; os paralelos entre episódios e referências do "Serafim" e passagens biográficas de seu autor (à espera de um crítico literário que os valorize); a existência de projeto para uma espécie de Departamento de Defesa do Patrimônio Histórico, esboçado em 1926, em vista do governo Washington Luís; a localização de fragmentos de peças teatrais, escritas em 1913, e até de um texto novo, "Os Lacaios", cujo grau de elaboração a biógrafa não conta; a carta pândega (a autora não revela se foi enviada) de Oswald endereçada a Luiz Carlos Prestes, oferecendo-lhe "uma ideologia climatérica -a nossa ideologia" que era a antropofagia em 1930; o apoio à modernização do Estado Novo a despeito da oposição política sistemática, inclusive sua atuação junto ao interventor paulista para criar uma espécie de Deip (?) em 1938; além de muitos elementos para que se conheça melhor o período posterior à separação de Patrícia Galvão.

VINICIUS DANTAS é ensaísta, poeta e tradutor

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