São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Referência perdida

JURANDIR FREIRE COSTA

Freud - Racionalidade, Sentido e Referência
Osmyr Faria Gabbi Jr. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência Unicamp, 236 págs. R$ 21,00

E m "Paradoxos da Irracionalidade", o filósofo Donald Davidson afirma de modo quase contra-intuitivo, face aos hábitos modernos de pensar, que tudo o que é mental é racional. Racional, no caso, quer dizer simplesmente que tais expressões são portadoras de intenção, isto é, são capazes de serem justificadas; de serem compreendidas ou explicadas em função de causas que são motivos ou razões. O que não é racional nos organismos humanos individuais é físico e, por conseguinte, nem racional nem irracional, mas "a-racional". Uma vez que irracional é o que não pode ser justificado, ou é insuficientemente justificado, diante de princípios eleitos como norma da racionalidade, o valor de um ato acrático ou irracional é sempre meramente relativo à sua posição no quadro da racionalidade padrão.
Osmyr Faria Gabbi Jr. tira partido das intuições davidsonianas e faz um estudo extremamente inteligente sobre a questão da referência ou do sentido dos atos inconscientes em Freud. Resumidamente, para o autor, Freud equivocou-se ao tentar substantivar o que era apenas uma função ou definição relacional de conflitos entre atos intencionais. Inconsciente ou ato irracional, para retomar a terminologia de Davidson, é a configuração mental assumida pelo choque de intenções entre diversos sistemas racionais de crenças e desejos. Dizemos que qualquer coisa é "inconsciente" quando a causa mental racional da conduta, do pensamento etc., não foi percebida ou construída como "razão", pela rememoração, perlaboração, interpretação ou construção.
Segundo Osmyr, o sentido da manifestação irracional inconsciente depende do standard de razão do qual parte o intérprete para diagnosticar o que é ou não irracional. Deste modo, o "sentido" dos atos inconscientes não pode ser buscado ou encontrado numa "coisa" ou "realidade" independentes da relação entre sistemas racionais em conflito. O referente do ato inconsciente, aquilo a que "se refere" o inconsciente, só pode ser encontrado no interior de intenções linguisticamente formadas. Só a trama da linguagem pode fazer-nos descrever alguma coisa como "irracional", justamente porque parte da premissa de que mental e racional se equivalem. No fundo de toda irracionalidade existe uma intenção não revelada ou não reconstruída como "razão" da irracionalidade considerada.
Mas uma concepção deste tipo só é possível quando dispensamos teorias de linguagem do tipo "representacional" ou "representacionalista". Freud manteve-se preso a esse tipo de teoria, imaginando a linguagem segundo o modelo de "representação de coisa" ou da "designação ostensiva", conforme o vocabulário de Wittgenstein. A busca da coisa ou do fato que a linguagem deveria representar para a mente, tornou-se uma busca obsessiva do referente perdido ou oculto pelo recalque. Se este referente não existisse, pensava Freud, a psicanálise não seria uma ciência e sim mais uma fábula; mais um mito; mais um conto de fadas. Como assinala Osmyr, o referente do inconsciente ou das manifestações do inconsciente passa a ser o enigma com o qual Freud se debate até o fim de seu trabalho.
As hipóteses sobre a realidade pré-linguística ou pré-descritiva deste obscuro referente proliferam. Freud tenta encontrá-lo ou "descobri-lo" na realidade neurofisiológica; em cenas de sedução sexual traumáticas realmente vividas ou apenas fantasiadas; em estruturas filogenéticas do espírito humano, como o desejo incestuoso ou a culpa pelo parricídio do pai primordial etc. Todas as tentativas visavam garantir a presença e a existência de uma referência externa; de um fato extralinguístico que fosse a origem e o suporte do "sentido" do ato inconsciente ou do sintoma. Alterações quantitativas de níveis energéticos; afetos bloqueados; dinâmica do prazer x desprazer; "verdades históricas de acontecimentos vividos", foram sucessivamente propostos como candidatos fidedignos à "referente" do inconsciente e, em seguida, destituídos de suas funções, pela impossibilidade de serem inequivocamente verificados como fenômenos dissociáveis das crenças ou convicções dos sujeitos sobre o que era ou não a autêntica realidade do evento-causa do sintoma.
Cada vez que Freud imaginava ter acesso ao referente cru, que seria o verdadeiro objeto ou núcleo do sentido do sintoma, deparava-se com lembranças encobridoras; construções de história aceitas como verdadeiras, embora jamais rememoradas; significação a posteriori de fatos ou cenas supostamente ocorridos antes de poderem ter sentido etc. Todos estes fenômenos impediam-no de observar a existência do referente que deveria funcionar como ponto de apoio, independente de descrição ou interpretação, para a produção do ato irracional ou inconsciente.
Enfim, conclui Osmyr, a resistência de Freud em reconhecer a natureza linguística do inconsciente apela para a compulsão à repetição e para a pulsão de morte como últimos referentes dos atos irracionais. Mas, pergunta ele, como algo que não é nem racional nem irracional pode ser produtor de sentido? Como derivar de causas genéricas e inespecíficas, como a morte ou a repetição, o sentido circunscrito dos sintomas? Se a causa dos fatos psíquicos inconscientes está na "a-racionalidade" da morte ou da pura repetição, a "démarche" freudiana voltaria ao ponto zero. Em que, por exemplo, uma noção de causa tão vaga quanto "pulsão de morte" tem mais valor explicativo do que velhas noções como "disposição constitucional", "estados hipnóides", ou qualquer outra idéia psiquiátrica oitocentista, repetidamente criticada por Freud? A psicanálise surgiu com a tentativa de dar sentido ao que aparentemente não tinha sentido. Se nos contentamos em afirmar que no solo do ato irracional existe apenas repetição, pulsão de morte ou conceitos equivalentes, em que isto se distingue dos venerandos conflitos metafísicos entre corpo e espírito, paixão e razão, instinto e vontade etc?
Para os especialistas no domínio da psicanálise, "Freud - Racionalidade, Sentido e Referência" é um estudo de valor inestimável. Os horizontes de investigação clínico-teóricas abertos pelo estudo de Osmyr são fascinantes. Como exemplo, dou o tema da referência. Para Davidson, referência é apenas uma noção retrospectiva, usada por economia e comodidade operacional no jargão técnico da semântica. Chamamos de referente tudo aquilo que está causalmente conectado ao uso regular de termos, frases ou expressões. Mas só podemos isolar a referência de uma palavra, quando dispomos previamente de uma teoria de verdade que confirme a correção ou adequação da palavra àquilo a que ela se refere. Referência é um construto e não um pedaço não-linguístico do mundo, independente de descrição. Qualquer realidade linguística ou material pode ser o referente de qualquer palavra ou frase. É o contexto holístico que autoriza ou legitima como sendo correto o vínculo referencial entre certas palavras e certas coisas. Referência é simplesmente "aquilo acerca do que se fala"; aquilo que pode ser entendido pela maioria dos falantes competentes de uma língua, como causa de enunciados linguísticos com sentido.
Se se aceita esta idéia de Davidson, as consequências para a teoria psicanalítica são inúmeras. Podemos perguntar, por exemplo, qual a referência ou o referente da sexualidade? O "inquestionável" substrato sexual do inconsciente é uma coisa, uma causa que não é razão ou uma invenção linguística que funciona como "razão que é causa" de certos sintomas ou atos inconscientes? A sexualidade, referente privilegiado do inconsciente, é algo externo, existente por si, ou também é, como qualquer outro referente, o resultado das teorias de verdade que o intérprete usa para atribuir sentido aos sintomas ou atos irracionais? Basta acreditar em nossas intuições imediatas sobre a natureza indubitável do inconsciente sexual ou é possível levar adiante a investigação freudiana e questionar a própria inquestionabilidade da "coisa sexual"?
Em dado trecho do livro, citando críticas de Wittgenstein a Freud, Osmyr diz: "Wittgenstein, certa vez, observou que, diante das 'explicações freudianas', temos duas possibilidades: ou Freud 'quer explicar tudo quanto há de bom de uma maneira suja, dando a entender que se deleita com obscenidades' -o que ele (Wittgenstein) exclui-, ou às conexões que estabelece interessam imensamente às pessoas. Têm certo encanto. É encantador destruir preconceitos" (pág. 208).
Hoje, penso, depois de Foucault e todos os historiadores das mentalidades e sexualidades, a afirmação de Wittgenstein poderia ser outra. A sexualidade encantava Freud, seus clientes e adversários intelectuais, não porque destruía preconceitos, mas porque estava sendo linguisticamente fabricada como sendo o "referente" por excelência de nossas subjetividades. Freud não inventou a sexualidade invasiva que, até hoje, parasita nossas mentes conscientes ou inconscientes. Até aí apenas repetiu o que o senso comum psiquiátrico e sexológico do século 19 não cessava de tagarelar.
Seu maior mérito, a meu ver, foi o de ter dito que não somos uma identidade, mas múltiplos e conflitantes sistemas de crenças e desejos. Só que, no momento de pensar em quais sistemas de "crenças e desejos" moviam a economia psíquica de suas histéricas e seus obsessionais, viu ou pode ver apenas "sexo", porque era disso que, de fato, se tratava. Era disso que, de fato, estavam todos saturados! Nada existe de espantoso nesta constatação. A maioria de nós, cem anos depois, só consegue pensar em psicanálise, sujeito, desejo etc., com o sexo na cabeça, nas teorias, telas e disquetes de computador. Porém, se prestarmos suficiente atenção ao que diz Osmyr, a partir de Davidson e Wittgenstein, nada impede que venhamos a pensar na sexualidade como mais uma destas cristalizações imaginárias produzidas por metáforas linguísticas que, historicamente, "deram certo", por obra de acasos e necessidades.
Este é um livro sobre a psicanálise, seus erros e acertos, como rarissimamente se fez no Brasil. Um estudo em tudo feito para convidar-nos a abandonar os conformismos intelectuais pré-fabricados e a pensar em psicanálise como uma invenção humana que só tem sentido se servir para melhorar a vida de humanos. Quem não souber o que quer dizer "melhorar a própria vida", tente a psicanálise ou inspire-se no livro de Osmyr.

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