São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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O roteiro e sua pedagogia

JEAN-CLAUDE BERNARDET

Gabriel García Márquez Conta Como Contar Um Conto
Gabriel García Márquez Tradução: Eric Nepomuceno Casa Jorge Editorial, 307 págs. R$ 22,00

A escola de cinema de Lodz, na Polônia (uma das mais famosas da Europa, pela qual passaram cineastas como Wajda e Kawalerowicz), não tem curso de roteiro. Seus dirigentes consideram que não há pedagogia específica para o ensino do roteiro, o qual vem sendo trabalhado em diversas áreas, como direção, produção, fotografia, documentário etc.
Quase todas as outras escolas têm cursos de roteiro e quase todas elas têm problemas a esse respeito: o que é roteiro? O que poderia ser o ensino do roteiro? Mesmo as escolas americanas encontram dificuldade para responder a estas perguntas, apesar de existir nos EUA uma dramaturgia cinematográfica bem mais codificada que em outros países.
Intensificou-se nos últimos anos a publicação de livros sobre roteiro e, particularmente, sobre o ensino do roteiro. Estes livros parecem se dividir em duas grandes categorias: uns são tratados de dramaturgia cinematográfica, apresentando um sistema bastante seguro e fechado de como desenvolver a narrativa cinematográfica de ficção para longa-metragem; outros, destinados a professores e/ou estudantes, não se apóiam em sistemas dramáticos rigorosos, e apresentam relatos comentados de experiências didáticas e conselhos a quem começa a escrever roteiros.
No Brasil, foram publicados em 1995 dois livros que pertencem a cada uma dessas categorias: enquadra-se na primeira o "Manual do Roteiro" (ed. Objetiva) de Sid Field, papa do roteiro norte-americano tradicional; e na segunda o "Gabriel García Márquez Conta Como Contar Um Conto".
O livro de García Márquez, baseado num "workshop" realizado na escola de cinema de San Antonio de los Baños, em Cuba, se compõe da transcrição revista de discussões entre alunos e professor, que visavam elaborar 13 histórias de meia hora para a televisão.
Um dos problemas que se colocam os professores é se se deve iniciar o ensino do roteiro com análises de obras já existentes e com conceitos (a personagem, as três partes da narrativa etc.), ou se é preferível um trabalho mais empírico, a partir de histórias concretas, fornecidas por estudantes, professores ou extraídas de textos literários. García Márquez deixa clara a sua opção: é a segunda -o mesmo ocorrendo, aliás, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O procedimento passa a ser então, aproximadamente, o seguinte: a história é discutida, transformada, refeita etc., e é pelo viés dessa elaboração que questões metodológicas e conceituais vêm sendo abordadas. Esta atitude apóia-se em alguns princípios pedagógicos: primeiro, dificilmente o estudante se tornará roteirista se não revelar alguma predisposição pessoal e intuitiva (usando um termo romântico, poderíamos dizer: talento) não só para imaginar histórias como para construí-las; segundo, retomando uma afirmação de Jean-Claude Carrière: a imaginação é como um músculo, precisa malhar para desenvolvê-la; terceiro, é só em situações concretas que os estudantes se sensibilizam para os problemas metodológicos e conceituais.
Assim, o diálogo entre García Márquez e seus estudantes aborda como que "en passant" questões fundamentais, às quais os estudantes se tornariam provavelmente menos sensíveis se o professor tivesse feito exposições magistrais. Cito alguns exemplos:
- a questão da visualidade na elaboração da ficção cinematográfica e a necessidade de colocar os conflitos íntimos das personagens em situações que possam ser vistas, caso contrário chegamos a monólogos infindáveis. Defrontam-se com este problema todo professor e quase todo estudante em início de curso.
- escrever para o público. Frequentemente os estudantes querem que suas histórias sejam "ambíguas": em geral, em Cuba como em São Paulo, não se trata de uma ambiguidade construída que o espectador compreenderá como tal, mas de uma imprecisão dramática. Em Cuba como em São Paulo, a reação dos estudantes é do tipo: eu quero assim, eu sinto assim etc. Delicadamente, García Márquez chama a atenção sobre o fato de que quem tem que querer não é o "roteirista", mas a "organicidade" da história. Este exemplo é excelente para se perceber o sistema de ensino: a questão da organicidade é levantada na discussão de uma história capenga; a organicidade remete a uma questão básica da dramaturgia e é um conceito aristotélico. Sem referência a Aristóteles (ou a Sid Field que, basicamente, é aristotélico), e através de uma dificuldade encontrada numa situação concreta, García Márquez encaminha o estudante para a percepção do problema.
- essa organicidade procurada leva a uma prática fundamental no método de García Márquez, que consiste em contar a história de forma condensada: se a história não puder ser contada em poucos parágrafos, é que está mal construída. García Márquez solicita a seus estudantes que façam a condensação por escrito; para o mesmo fim, a ECA/USP adota um método oral: se o estudante não conseguir resumir a história, e um ouvinte atento não conseguir reproduzir o resumo, a história está mal articulada.
E assim vão sendo abordados tópicos fundamentais, de forma indolor e brincalhona. Essas anotações sobre o livro de García Márquez darão a impressão de se tratar de obra de interesse exclusivo de professores e estudantes. Será importante para eles (ainda mais no Brasil onde temos pouca bibliografia sobre o assunto), mas outras leituras são possíveis.
Essas histórias que vão se elaborando e se transformando no decorrer dos debates, o leitor poderá tomá-las como uma espécie de "work in progress" e se interessar mais pela dinâmica da evolução da narrativa do que pelas histórias em si, nem sempre fascinantes. O leitor poderá ir um pouco mais longe -certamente o jogo se tornará mais divertido-, acrescentar seu grão de sal nas histórias e entrar no "work in progress", imaginando outros comportamentos para as personagens, outros desenlaces. Só que essas modificações não serão comentadas por García Márquez.

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