São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Crítica militante

FERNANDA PEIXOTO

Cultura e Imperialismo
Edward W. Said Tradução: Denise Bottman Companhia das Letras, 460 págs. R$ 31,00

No sentido mais amplo do termo, "Cultura e Imperialismo", do professor de literatura comparada da Universidade de Columbia Edward Said, é um livro militante. Trata-se de uma obra que visa não apenas empreender uma nova leitura de certa tradição intelectual e literária, mas também interferir no debate do seu tempo. O inegável caráter combativo do trabalho é responsável pelas suas maiores virtudes e, simultaneamente, pelos flancos que abre.
Se é verdade que o livro "toma partido", defendendo uma clara posição em prol do resgate das diferenças culturais, é preciso deixar claro que não estamos diante de um intelectual ingênuo que realiza um elogio tolo ao multiculturalismo, ou de um "radical-naif" que empreende uma mera condenação moral do imperialismo. Ao contrário, Said possui uma postura bastante crítica em relação aos efeitos perversos de toda sorte de nacionalismos e de fundamentalismos que assolam a Europa e suas ex-colônias, sublinhando, ainda, os riscos separatistas dos movimentos das chamadas "minorias" étnicas.
Diante disso, a maneira mais interessante de ler a obra é tentar escapar da crítica genérica (não menos militante), que poderia vê-la como fruto de "modismos multiculturalistas". O sucesso editorial da publicação explica-se menos por um eventual marketing intelectual do autor mas, sobretudo, pelo volume e importância das questões que levanta. Não esqueçamos também que a sólida produção de Said vem, já há algum tempo, chamando a atenção do público e da crítica por sua erudição e sofisticação analítica (1).
O livro agora publicado no Brasil é fruto da pesquisa anterior do autor sobre os discursos orientalistas, editada em 1978. Em "Orientalismo" (Cia. das Letras, 1990), Said mostra como a distinção ontológica e epistemológica feita entre "Oriente" e "Ocidente" informou uma massa considerável de escritores, que criaram a partir daí uma série de imagens sobre o oriental, seu "espírito", "sensualidade" e "exotismo". O orientalismo é um "discurso" produzido e moldado por vários tipos de poderes, constituindo-se, no limite, como uma "invenção" ocidental que diz mais sobre os projetos de controle e de produção do Oriente e, logo, sobre a cosmologia ocidental do que sobre as realidades não-ocidentais (2).
"Cultura e Imperialismo" busca ampliar a argumentação do livro anterior na medida em que procura descrever um modelo mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano moderno e seus territórios ultramarinos. Assim como na interpretação das descrições orientalistas, Said volta-se para os discursos "africanistas", "indianistas" e vários outros -lidos como parte integrante da tentativa européia de dominar povos e terras distantes-, procurando neles imagens e representações acerca das realidades coloniais. Só que, ao contrário de "Orientalismo", onde a análise está concentrada nos textos produzidos nas metrópoles, neste último trabalho são incorporados os materiais culturais que surgiram como reação ao domínio colonial.
Nesse sentido, "Cultura e Imperialismo" é uma obra mais ambiciosa -e, talvez por isso mesmo, mais problemática- que o trabalho sobre o orientalismo. Seguindo de perto as sugestões de Raymond Williams, Said pretende realizar uma história "materialista" das idéias e não uma obra de crítica literária. Isto é, seu objetivo é reinterpretar a literatura realista inglesa e francesa dos séculos 19 e 20, à luz de sua ligação com a empresa colonial. Enfocar obras individuais, mostrando-as como parte da relação íntima entre cultura e império, eis o desafio primeiro do intérprete.
Desde o início, Said adverte que não se trata de conceber os escritores e suas obras como "mecanicamente determinados pela ideologia, pela classe ou pela história econômica", mas de relacionar a cultura e suas formas estéticas à experiência histórica da empresa imperial. O propósito do analista, portanto, não é reduzir as obras aos seus suportes materiais mas, ao contrário, propor uma nova possibilidade de leitura que permita alargar e aprofundar nossa compreensão dessas obras e da própria aventura imperial dos séculos 19 e 20, poucas vezes interpretada do ponto de vista de sua ancoragem cultural.
O romance aparece para o intérprete dos processos imperialistas como suporte privilegiado da análise porque contribui para a criação de uma "estrutura de sentimentos, atitudes e referências", que sustenta, elabora e consolida a prática imperial. Mais do que produtos de gênios solitários, as obras romanescas narram uma certa visão de mundo, uma topografia cultural específica. "Ao empregar a expressão 'estrutura de atitudes e referências' ", diz Said, "estou pensando nesta topografia, bem como na fecunda expressão de Raymond Willians, 'estrutura de sentimentos'. Estou falando da maneira como as estruturas de localização e referência geográfica aparecem nas linguagens culturais da literatura, história ou etnografia, às vezes de maneira alusiva e às vezes cuidadosamente urdidas, por meio de várias obras individuais que, afora isso, não mantêm vínculos entre si nem como uma ideologia oficial do 'império' " (pág. 88).
Se o tempo foi um elemento incorporado pelas análises históricas dos materiais culturais, o espaço permanece ausente das interpretações. A proposta político-interpretativa de Said consiste precisamente em realizar uma espécie de exame geográfico da experiência histórica, baseado na idéia de que as formações culturais são produto de "territórios sobrepostos" e de "histórias entrelaçadas". Isto é, a empresa imperial aproximou o mundo, mesclou experiências divergentes, gerando uma interdependência entre as várias partes do globo terrestre. Diante disso, torna-se impossível, segundo o autor, ler isoladamente produtos culturais que são essencialmente híbridos, ambíguos e impuros. É preciso, ao contrário, ver em conjunto, e em contraponto, as várias culturas e as diferentes literaturas.
Este programa de leitura das obras literárias, apresentado logo no primeiro capítulo do livro, encontra-se primorosamente explicitado nas análises que realiza, no capítulo segundo, de "Mansfield Park", de Jane Austen e da ópera "Aida", de Verdi. Na descrição intimista característica da escritora, por exemplo, encontra-se perfeitamente desenhado o mapa imperial do mundo, por trás das referências "casuais" feitas a Antígua.

Continua à pág. Especial-9

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