São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Brasília com vaselina é fácil de governar

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Brasília com vaselina. No primeiro semestre, sonhei com essa campanha. Tudo muito seco por aqui. Lábios rachados, respiração curta e os cavalos brancos cobertos de poeira vermelha. Foi a primeira vez que procurei o governador Cristóvão.
Brasília com vaselina era um plano para mais um lago, fontes de água de beber pela rua (parceria com a iniciativa privada, governador) e, quem sabe, um milhão de árvores do cerrado.
Volto hoje ao palácio e chove muito. Vejo um pequeno hotel na escuridão. É um prédio cinzento, compacto, perfeito para um presídio de porte médio. Por que essa arquitetura de contenção? Imagino que seja para nos proteger da imensidão descampada do planalto. Ou para nos ensinar com cimento e pedra a linguagem a que temos de nos submeter numa capital, a preparar nosso corpo para os corredores de fria gentileza em que mergulhamos no cotidiano.
Capitais são um palco onde aparências nos governam. Não há bermudas, pernas de fora, longas divagações vespertinas diante de um copo, eu você, nós dois, você tem de ir embora e a tarde cai. Não. Aqui é a lei do lobby, do conchavo, negócios regados a um meticuloso uísque.
No limite, esse governo de aparências produziu grandes restaurantes de fachada. Lá dentro, ratos e baratas. O próprio Itamaraty, que deveria considerar a importância cultural de nossa cozinha, serve camarões estragados aos ucranianos. O estômago das classes dominantes brasileiras foi salvo pela saúde pública que se antecipou na festa da posse do presidente. Sem ela, todo o poder nacional saudaria com vômitos e diarréia a entrada de uma nova era política no país.
Fernando Henrique reclama que há demonstrações políticas e pipoqueiros na Esplanada. Qual o problema de pipoqueiros?
Por que não caberiam numa grande cidade?
Carroças de pipoca, travestis, prostitutas, famílias de migrantes vagando pelas avenidas -tudo isso não estava no plano. São incômodas arestas no rigor geométrico do arquiteto, irrupções humanas na epiderme gelada do conceito.
Antes de ir ver o governador, passei o dia na Câmara. Quando saí, um duplo espanto: anoiteceu e chovia. Aqui vivemos num subterrâneo.
Estourou uma bomba atômica na prancheta dos artistas e fomos condenados a vagar por túneis escuros, sobreviventes dessa invisível explosão, testemunhas de pretérito mundo de sol, vento e granizo.
Fernando Henrique reclama de demonstrações políticas na Esplanada. Na verdade, deveria reclamar de Esplanada nas demonstrações políticas. Por mais combativa que seja, toda pequena multidão gritando slogans e portando cartazes torna-se patética no vazio da paisagem.
Não há os caóticos ruídos da grande cidade como contraponto e slogans isolados, pausados e repetidos revelam-se brutalmente na sua essência. Irritam. Não há palmas, sorrisos, papéis picados, e os gritos de fervor político nessa atmosfera ressecada acabam se tornando fervor religioso.
Vistos de longe, são apenas blocos de crentes cantando mantras, piedosos fiéis que, ao invés da vida eterna e paraíso, pedem 15%, gratificação e plano de carreira. Esperam que alguém apareça nas janelas do palácio e os saúde como o papa e a multidão no Vaticano.
O presidente deveria proibir esplanadas na manifestação. Poderia criar um espaço para as crianças, suportes para os cartazes, sistema de rodízios para faixas e, quem sabe, um fotógrafo oficial para registrar os melhores momentos de protesto contra seu governo.
Simone de Beauvoir dizia que é impossível se sentir uma princesa com uma toalhinha ensanguentada entre as pernas. É difícil sentir-se um príncipe tomando comprimidos contra a diarréia. Mas tudo isso passa e o presidente poderá comer pipocas na praça dos Três Poderes. Não se vendem apenas alimentos ali, mas uma viagem à infância. Há quem apenas come, quem se engasga com a casca, mas as pipocas são um passaporte para o tempo perdido, ou o tempo que perdemos aqui, numa cidade muito bem planejada mas que esquecemos de inventar.

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