São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Minas

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Entrei na livraria que havia feito uma vitrina com o meu primeiro livro. O ano era remotíssimo. Autor novato tem alguma curiosidade e nada demais que eu quisesse saber o que a plebe achava. Fiquei ao lado da vitrina, as pessoas passavam, uma ou outra olhava por olhar e se mandava. Até que dois sujeitos pararam e ficaram olhando os livros simetricamente dispostos num painel forrado com veludo preto.
Um deles perguntou: "Quem é esse cara?" O outro respondeu na bucha: "É um mineiro, amigo do Otto Lara Resende. Depois dos nordestinos, vamos ter agora uma enxurrada de mineiros."
Tive vontade de me apresentar, garantir que muito apreciava os mineiros, adorava Minas, não conhecia o Otto nem sabia que ele existia, eu vivia fora do meio, jogador de pelada de praia, pescador de siri, essas coisas, o fato de ter escrito um livro não me dava o direito nem de ser mineiro nem amigo do Otto.
Passou o tempo, seis anos depois abriram uma ficha no Dops com minhas atividades subversivas. As primeiras linhas eram esclarecedoras: "Mineiro, da Zona da Mata, onde promoveu agitações no meio estudantil."
Como sou negação em geografia, nem sabia onde era a Zona da Mata. Mas um ano depois, respondendo a um processo na auditoria militar de Juiz de Fora, fui novamente qualificado como mineiro, só que de Montes Claros.
O Luís Edgar de Andrade, que prepara um ensaio negando as coincidências, poderia extrair dessa insistência uma teoria para explicar tal e tanta mineiridade. Quando conheci o Otto perguntei-lhe se a minha cara era mesmo de mineiro. Ele me olhou com curiosidade, parecia que me olhava pela primeira vez e saiu-se muito bem: "Tudo é possível."
Pior mesmo foi o dia em que procurei Tancredo Neves para entrevistá-lo sobre Getúlio Vargas. Ele me abraçou efusivamente e propôs me ajudar num livro que acabei escrevendo. Mas o argumento dele foi devastador: "Só mesmo um mineiro como você poderia entender certas coisas." Como disse o Otto, tudo é possível.

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