São Paulo, quinta-feira, 9 de novembro de 1995
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O Brasil é muito impopular no Brasil

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O Brasil é um país extraordinário, de imenso potencial. Durante muito tempo, acreditamos que o que impedia o nosso progresso eram as maquinações do estrangeiro. Qual o quê! O que atrapalha o Brasil somos nós, os brasileiros.
Essa afirmação pode parecer extremada. Mas não é preciso ir longe para confirmá-la. Reparem o que vem sendo feito no Brasil em matéria de abertura comercial externa nos últimos cinco ou seis anos. As trapalhadas que fizemos não resultaram de pressões externas avassaladoras. Pressões houve, é claro. Mas nada que possa ser qualificado de irresistível. No essencial, o processo resultou de decisões (ou omissões) internas.
A fase mais radical do processo de abertura começou, como se sabe, no governo Collor, época em que quase tudo era feito com grande incompetência e leviandade, na base de "arrancos triunfais de cachorro atropelado".
Não houve um mínimo de planejamento. Reinava a mais pura improvisação. Desmontaram-se os mecanismos de controle existentes e nada foi posto no lugar. A integração comercial com a Argentina, que vinha sendo conduzida, desde meados dos anos 80, com a devida cautela e dentro de um cronograma de longo prazo, foi acelerada de forma irresponsável e ampliada para incluir o Paraguai e o Uruguai.
Vejam o contraste: a Europa Ocidental vem construindo o seu projeto de integração regional há quatro décadas. Mesmo o Nafta, que é apenas uma área de livre comércio e não uma união aduaneira como o Mercosul, foi negociado e implementado com mais cuidado, sem açodamento.
Nos governos Itamar e FHC, a linha geral foi mantida no campo da política comercial externa. O Plano Real usou e abusou da abertura quase indiscriminada às importações como instrumento de combate à inflação, especialmente durante o segundo semestre de 1994. O Mercosul foi implantado e é agora encarado, com certa reverência, como pedra angular da política de integração internacional do Brasil.
Do ponto de vista do Brasil, é difícil entender como o Mercosul pode ser motivo para grande comemoração. Afinal, como diz o ex-secretário da Receita Federal Osiris Lopes Filho, o Brasil acabou se integrando com dois paraísos -um paraíso fiscal, o Uruguai, e um paraíso do contrabando, o Paraguai- e com um país anacrônico, a Argentina.
O anacronismo da Argentina é tão extraordinário que lá o combate à inflação vem se fazendo, desde 91, com a submissão a um regime monetário muito semelhante ao antigo padrão-ouro, com o dólar no lugar da "relíquia bárbara". Não por acaso, os argentinos ostentam hoje taxas de desemprego dignas da Grande Depressão.
Sem a ajuda providencial do Brasil, o Plano Cavallo talvez não tivesse sobrevivido às ondas de choque produzidas pelo colapso do México. Graças à combinação Mercosul-Plano Real, a Argentina pôde expandir substancialmente as suas exportações em 1994-95, a despeito da camisa-de-força imposta à política cambial e da forte valorização do peso em relação ao dólar.
Com a lei de conversibilidade, que fixa a paridade com o dólar, o peso argentino só se desvaloriza em termos reais se a inflação na Argentina for inferior à internacional, o que é difícil na prática, ou se o dólar se desvaloriza em relação a outras moedas relevantes para o comércio exterior argentino.
Sendo o Brasil um dos principais parceiros comerciais da Argentina nos últimos anos, a política de valorização cambial do Plano Real concedeu ao governo argentino a possibilidade de ter parte da desvalorização de que precisava, sem violar a lei de conversibilidade.
Além disso, as exportações argentinas foram ajudadas pela forte expansão da demanda agregada no Brasil até março/abril deste ano e pelas condições privilegiadas de acesso ao mercado brasileiro propiciadas pelo Mercosul.
Se os governos brasileiros fizessem tanto pelo Brasil quanto têm feito nos últimos tempos pela Argentina, não estaríamos tão mal. Mas não, o brasileiro é implacável com o Brasil. A abertura às importações não foi acompanhada de cautelas elementares. Até hoje, não temos mecanismos eficientes de proteção contra o "dumping" e a competição desleal. Diversos setores industriais estão expostos à concorrência predatória de importações. O governo não dispõe de uma estrutura para controlar os preços praticados no comércio exterior. Não consegue coibir o contrabando. Não adaptou o sistema tributário à abertura comercial.
E ainda comete erros primários, como o de perder os prazos de registro das medidas de incentivo às exportações na Organização Mundial de Comércio. Sobre esse último episódio, que beira o inacreditável, o governo ainda deve explicações à opinião pública. Os esclarecimentos dados até agora só fazem confirmar a concepção de que os interesses comerciais brasileiros continuam sendo tratados com amadorismo e descaso.
Se a economia nacional aguenta tudo isso, é porque o Brasil resiste heroicamente aos estragos produzidos pelos brasileiros. Muitos desses estragos resultam da nossa obstinada resistência a agir de acordo com o peso relativo do Brasil. "A América Latina", dizia Nelson Rodrigues, "é uma orla do Brasil. Se não existisse o Brasil, o Piauí, o Rio Grande do Norte e a Paraíba seriam importantíssimos países sul-americanos. Outro grande do continente seria Madureira".
Portador de um indestrutível "complexo de vira-lata", o brasileiro prefere, contudo, continuar à deriva, ruminando fantasias internacionais, cultivando tolamente uma relação simbiótica com a Argentina, a reboque de figuras como Carlos Menem e outros próceres latino-americanos.

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