São Paulo, quinta-feira, 9 de novembro de 1995
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Livro de Raymond Queneau dá aulas de estilo

NELSON ASHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Exercícios de Estilo", escrito originalmente em 1947 pelo francês Raymond Queneau é um livro aparentemente banal. Sua trama -se é que isso tem alguma importância- é simples: o narrador descreve uma rápida altercação num ônibus parisiense entre dois sujeitos e acrescenta que viu um deles depois, num outro canto da cidade, recebendo de um amigo conselhos sobre alterações necessárias no seu sobretudo.
Essa história irrelevante é repetida, na primeira versão do livro, 99 vezes de acordo com estilos retóricos, gêneros literários e outras tantas coisas diferentes.
Essas 99 variações, inspiradas pela idéia da variação musical, não fornecem ao leitor informações suplementares acerca do que se passou ou de seus participantes, mas lançam mão de uma gama grande de recursos.
Ao lado de exercícios com nomes que são, no mínimo, exóticos para os não especialistas -litotes, sínquises, palavras-valise, apóstrofe- há outros que podem ser imaginados sem um phd: empolado, soneto, gincana verbal.
Todos repetem a mesma coisa, mas, depois da leitura de apenas alguns, o livro já começa a entremostrar a que vem: de uma forma assistemática, aliás, verdadeiramente caótica, o livro compendia não exaustivamente e ilustra no registro de uma sátira peculiar a ossatura sobre o qual o Ocidente -e provavelmente o Oriente- assenta há três mil anos a sua imaginação.
Em outras palavras, Queneau realiza enquanto obra imaginativa o que se espera mais ou menos em vão da maior parte da crítica, história e teoria literária. E, ao contrário das obras destas últimas categorias, o livro do francês é, antes de mais nada, legível.
Se alguém quer se tornar escritor, o autor em questão fornece não só 99 modelos do que é escrever como parece igualmente afirmar, primeiro, que quem não dominar essa capacidade proteica de variar, do percorrer vários registros não é do ramo e, segundo, que esse domínio ainda não é o bastante para transformar alguém em escritor. "Exercícios de Estilo" é, assim, a redução ao absurdo de toda uma idéia da literatura.
O livro de Queneau desfaz, provavelmente para sempre, muitas concepções corriqueiras sobre o que é escrever. Há nele uma coisa absolutamente clara: cada exercício, por mais simples ou complexo, é apenas isso: um exercício.
Ele ainda não é literatura ou, no caso de variações em forma de ode, soneto, haiku etc., não se trata ainda de poesia. Cada um deles é insignificante e, dado o teor (ou falta de) da trama, propositadamente idiota. É somente o seu conjunto que funciona e o salto imaginativo, neste caso, está em transformar os velhos e complicados manuais de retórica ou estilo, os catálogos de gêneros e tratados de versificação em algo criativo.
Por outro lado, uma vez feita essa operação, não há retorno e uma massa escrita e/ou impressa maior do que se possa conceber acaba perdendo qualquer sentido.
Os "Exercícios" são um desafio à crítica. Já que essa em geral não passa também de um exercício -a paráfrase às vezes reorganizadora do texto original, a busca de significados ocultos ou latentes que é uma forma de variação-, o que pode ela dizer de uma obra que se vale de seus próprios recursos habituais? Pouco ou nada: o livro de Queneau simplesmente prescinde da crítica.
Mas ele é um desafio delicioso para o tradutor. As opções e as encruzilhadas que oferece são infinitas. Além de tentar reproduzir aquilo que o autor fez em francês o tradutor é implicitamente convidado a -dentro de cada exercício e no seu conjunto- transpor, adaptar, retorcer, perverter as variações segundo ou contra a natureza de sua língua. Surge, além do mais, a possibilidade de criar novos exercícios peculiares à língua para a qual se traduz.
Umberto Eco fez tudo isso na sua versão italiana e, na sua tradução excelente, Luiz Rezende faz tanto ou mais. Numa época em que a prosa brasileira sofre de todos os tipos de carência -falta de idéias, falta de estilo, falta de competência pura e simples- a tradução brasileira de Queneau mostra que o problema não é da língua portuguesa. Se, após muitos anos, surgiu uma obra que pode ajudar a prosa brasileira a retomar seu melhor caminho, essa é o Queneau de Luiz Rezende.

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