São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 1995
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Domingo é dia do fantástico show da morte

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Era noite de sábado e fomos jantar na casa de amigos, casa nova, livros ainda nos caixotes, móveis espalhados e alguns porta-retratos marcando o território familiar.
Ela cozinha muito bem e nos telefonou, lembrou de nós etc. Ele é um psicanalista, de forma que discutimos um pouco antes do vinho francês; afinal, estava comprado mesmo, então adiaríamos por um jantar nosso protesto contra Chirac.
Foi nesse momento que lembrei que tinha visto o amigo num "Fantástico", dando entrevista sobre algo de que não me lembrava bem, e ele me perguntou qual era mesmo o programa e disse que não sabia direito, tentei me lembrar de uma bactéria assassina, um número de mágica e muitos gols. Eram gols em campos diferentes, iluminados de forma irregular, uma parte estourada, outra bem escura.
Ele me olhava paciente diante do que seria nossa última garrafa de vinho francês e eu disse que me lembrava também de algo como o sol da meia-noite numa aldeia da Noruega. Era mesmo a Noruega?
Sim, sem dúvida era a Noruega, e havia alguns políticos tropeçando em fios, comendo palavras e batendo na cabeça cada vez que erravam diante das câmeras.
Era noite de sábado, creio que disse isso acima, e todos esperavam de mim um pouco mais de precisão e perceberam que confundia domingos diferentes.
Foi então que disse que não há domingos diferentes na televisão, pois fazia alguns anos que ligava e via corridas de automóvel, programas de auditório -a bactéria assassina- mais um número de mágicos e aqueles gols.
O amigo falou algo sobre compulsão e repetição mas me dei conta de que domingo é dia do fantástico show da morte, não por causa do Ébola ou mesmo da bactéria assassina, mas porque temos a sensação de que é sempre o mesmo domingo, que fomos congelados na poltrona e nos enrijecemos como o fio de macarrão que saltou fora da panela e ficou colado na trempe.
Talvez seja isso: como nas ruas do centro da cidade, morremos todos os domingos, indo ou não para o trono, subindo ou não no pódio, ajoelhando ou não na lateral do campo para comemorar o gol.
Morremos de pijama, com vinho moscatel nos bares, morremos diante da sogra, do queijo ralado, do brigadeiro, das manchas de guaraná, morremos na missa das seis, morremos no colarinho fechado da camisa dos crentes, morremos na capa da Bíblia, nos restos de feira, nas filas da churrascaria, enfim morremos intensamente nos domingos e eles nos jogam notas amarrotadas, toneladas de papel-jornal, concerto ao ar livre.
Quando nos demos conta já era mais de meia-noite, o céu estava claro e estrelado, e retardatários cruzavam a rua em alta velocidade. Despedimo-nos com um licor, último desejo, deslizamos funebremente para a madrugada de domingo e, com a promessa da manhã, pensei em pedalar no purgatório.
Certamente naquela noite haveria imagens de Juanita, a menina inca que foi achada no Monte Ampato, 500 anos depois de sacrificada.
O lábio superior um pouco levantado, o olho esquerdo mais aberto que o direito, aquele estupor congelado por séculos, como se alguém tivesse dito: "A sorteada da noite é a senhora Luci e voltaremos com novos prêmios, depois dos comerciais".

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