São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 1995
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Ato não foi religioso, diz rabino

OTÁVIO DIAS
DO ENVIADO ESPECIAL

Logo após ter disparado os dois tiros que mataram Yitzhak Rabin, Yigal Amir, um jovem judeu de formação ortodoxa, afirmou ter "recebido instruções de Deus para assassinar o primeiro-ministro".
Seu ato está provocando intenso debate na sociedade israelense sobre a ligação entre ortodoxia religiosa e extremismo político.
Em entrevista à Folha, Israel Meir Lau, 58, rabino-chefe de Israel, rejeita as justificativas teológicas de Yigal Amir e revela sua preocupação quanto ao futuro do judaísmo e de Israel.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, realizada na casa do rabino-chefe, em Tel Aviv.

Folha - O atentado aprofundou a divisão existente entre os judeus ortodoxos e os outros cidadãos. Religiosidade está sendo identificada com extremismo político. Isto é uma ameaça ao judaísmo e a Israel?
Israel Meir Lau - Sou rabino há 35 anos e tudo o que fiz durante este tempo foi tentar construir pontes entre os dois grupos.
Depois do Holocausto, as pessoas se afastaram da tradição judaica. Todo o nosso trabalho foi no sentido de construir pontes para trazê-las de volta às raízes.
Esse acontecimento horroroso destruiu nosso trabalho, quem sabe por quanto tempo. Eu choro por Yitzhak Rabin, meu amigo pessoal, e choro pelo ódio que o atentado criou. Todo o trabalho de construir amizade, ou pelo menos compreensão e respeito, entre os dois grupos foi destruído. Por isso estou tão revoltado.
As pessoas dizem: Yigal Amir assassinou Rabin, e ele é religioso. Na minha opinião, ele não é religioso. Se matou alguém, como pode ser religioso? Nos Dez Mandamentos, não está escrito "Não Matarás"? O ato nos trouxe de volta dias negros.
Folha - Por que os judeus ortodoxos se opõem ao processo de paz conduzido por Rabin?
Lau - Porque eles seguem a Torá, a Bíblia, que descreve as fronteiras da terra de Israel, prometida por Deus a Abraão, Isaac e Jacó. Eles viram na devolução de territórios aos árabes algo contra a lei judaica.
Folha - Qual a sua opinião sobre isso?
Lau - Eu sempre disse: temos de respeitar nosso Parlamento e nosso governo, eleitos pela maioria. Ou estaremos numa anarquia. Se alguém não concorda com a política das autoridades, só há um meio de mudá-la: por meio do voto. Isso é democracia.
Folha - Mas o sr. concorda com a política de Rabin de trocar terras por paz?
Lau - Às vezes é preciso retirar alguns órgãos para salvar o corpo. É doloroso, mas não há outro jeito. Nossas autoridades decidiram dar parte de nossas terras para atingir a paz. Temos de aceitar. Se cada um fizer o que quiser, não há sociedade. Há a selva.
Folha - Yigal Amir justificou o assassinato como um ato de autodefesa, já que o processo de paz ameaçaria vidas de judeus. Em que casos a lei judaica autoriza uma pessoa a matar outra?
Lau - Só em caso de autodefesa. Se alguém ameaçar sua vida, você tem o direito de matar essa pessoa antes que ela o mate. Mas o que isso tem a ver com o assassinato de Rabin?
A justificativa de que a devolução de terras de Israel aos árabes ameaçaria, talvez, a vida de moradores nos assentamentos judeus não é válida. A lei só permite a autodefesa no momento da ameaça, imediatamente.
Folha - Embora não haja confirmação, é possível que Amir tenha recebido "autorização religiosa" de um rabino para cometer o atentado. O que o sr. tem a dizer sobre isso?
Lau - Não sou da polícia nem dos órgãos de inteligência para apurar suspeitas desse tipo. Mas se isso aconteceu, esse rabino não seria um rabino. Assassinato é a falha mais grave de acordo com o judaísmo. Não temos autorização para tirar a vida de ninguém.
Como uma pessoa pode pronunciar uma sentença de morte para Yitzhak Rabin ou Shimon Peres? Nem mesmo para Amir nós podemos fazer isso.
A vida não está nas nossas mãos. "A vida é de Deus e só ele pode tirá-la", diz a Torá. Se um rabino deu essa ordem, não é mais um rabino.
Em seu depoimento à Corte, Amir disse que agiu sob as ordens de Deus. Espero que ele repita isso mais e mais. Assim todos verão que ele é louco. Se começar a falar de maneira lógica, então teremos um problema.

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