São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 1995
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Neocivilização

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Dificilmente permaneço mais de cinco minutos diante de um canal da TV. Suspeito que há coisa melhor em outro lugar, e geralmente não é verdade. Sou péssimo espectador. Mesmo assim, vi a entrevista do cineasta Pedro Almodóvar no "Roda Viva". Apenas trechos, fiquei sem saber o enredo -se é que a entrevista tinha um enredo.
Guardei uma queixa do cineasta. Ele acha que os europeus não dão bola para a Espanha -como se a Espanha não fosse Europa. Em termos de investimento, distribuição e exibição, Almodóvar considera que o europeu menospreza o cinema espanhol, não o absorvendo no seu núcleo cultural e econômico.
Talvez seja verdade. Para o europeu "do norte", a civilização ocidental termina em Florença -mesmo assim por causa de Dante, Maquiavel, Leonardo e Michelangelo. Geograficamente, seria impossível desprezar o berço da Renascença. Mas daí para baixo, é tudo África. Roma e Espanha inclusive.
Almodóvar falou que os espanhóis são considerados ora mediterrâneos (o que é uma verdade, embora a palavra tenha conotação pejorativa para o europeu do norte) ora simplesmente africanos, varridos pelos mesmos ventos do Saara e pelas caravanas otomanas que invadiram a península diversas vezes.
No entanto, a Espanha deu Cervantes, Goya, Velásquez, Picasso, Murilo, El Greco, Teresa de Ávila, João da Cruz, Loyola, Miró, Lorca, Dali, Buñuel, Gaudí -se isso não é Europa nem faz parte da cultura ocidental, eu fico pensando no Brasil, que sequer recebeu caravanas otomanas.
Pouco a pouco, começam a considerar as civilizações de forma discriminatória e truculenta. Se a Espanha deixa de ser Europa, o Brasil deixa de ser latino e passa a ser "moreno" -forma delicada de racismo.
Nos Estados Unidos também é antiga a classificação discriminatória. Amiga minha, artista plástica premiada internacionalmente, atravessou costa a costa para frequentar curso de um intelectual bostoniano em Los Angeles. Na primeira aula, perguntaram-lhe se era sul-americana. E a convidaram a retirar-se da sala, devolvendo-lhe o dinheiro da inscrição.

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