São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 1995
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PF enganou juiz para realizar "grampo"

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A Polícia Federal enganou deliberadamente o juiz Irineu de Oliveira Filho na operação para tornar legal o "grampo no telefone do ex-chefe do cerimonial da Presidência Júlio César Gomes dos Santos.
A operação foi feita sem o conhecimento do ministro da Justiça, Nelson Jobim, a quem a PF está subordinada. Apenas Vicente Chelotti, diretor da polícia, tinha conhecimento da iniciativa.
A Folha ouviu nas últimas 48 horas quatro personagens envolvidos no episódio. Sob a condição do anonimato, eles revelaram detalhes do caso que gerou a maior crise do governo Fernando Henrique Cardoso, desde a sua posse em janeiro deste ano.
Titular da 2ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal, o juiz Oliveira Filho recebeu uma inesperada visita no dia 28 de agosto passado. Foi procurado pelo delegado Mário José de Oliveira Santos, chefe do Centro de Dados Operacionais da Polícia Federal, afastado do cargo ontem, após a revelação de seu envolvimento com a escuta telefônica.
O primeiro encontro
Era a primeira vez que os dois se encontravam. O delegado sentou-se à frente do juiz e apresentou-se como responsável pelo combate ao narcotráfico. Sacou de um envelope uma papelada que impressionou seu interlocutor.
Era um documento confidencial da PF, um mapa do tráfico de cocaína em todo o Brasil. Trazia, Estado por Estado, nomes de traficantes. Informava sobre ramificações de quadrilhas brasileiras com o tráfico internacional. Mencionava os cartéis de Cali e de Medelín, ambos da Colômbia. Citava também uma tal "conexão Nigéria".
Após longa digressão sobre as atividades de seu departamento, o delegado Santos foi direto ao ponto. Disse que vinha recebendo insistentes denúncias sobre o envolvimento de um tal Júlio César, "vulgo JC", com tráfico de drogas. Nenhuma palavra sobre o cargo de Júlio César.
O drible no juiz
Foi a forma que se encontrou para monitorar o telefone do chefe do cerimonial do Planalto. Se Júlio César fosse apresentado como funcionário graduado da Presidência da República, a obtenção de autorização para escuta seria dificultada. Não sairia sem uma cautelosa investigação prévia.
Não havia qualquer documento formalizando as supostas denúncias. Teriam sido feitas anonimamente, pelo telefone. O juiz não estranhou. Está habituado a lidar com casos de tráfico de drogas. Nessa área, o denunciante quase sempre busca o anonimato como forma de evitar represálias.
Oliveira Filho pediu ao delegado Santos que formalizasse a solicitação da escuta telefônica. No mesmo dia 28 de agosto, redigiu-se na Polícia Federal o ofício 037/95. São duas páginas, ambas assinadas pelo delegado. Na primeira, solicita-se autorização para o grampo nos telefones 248-0610 e 986-2127, ambos de Júlio César.
Na segunda página, o delegado apresentou um relatório sobre as supostas apurações preliminares realizadas pela polícia.
O relato sobre as investigações coube em dois parágrafos -12 escassas linhas no total. Tudo o que a PF informou ao juiz foi o nome completo do suspeito -Júlio César Gomes dos Santos- e seu endereço -SHIS QI 09, conjunto 11, casa 03, Lago Sul.
Disse, de resto, que não foi possível "determinar se as denúncias anônimas procediam". Relata também que, em novos telefonemas, o denunciante anônimo cobrava providências da Polícia Federal, para evitar que, no futuro, fosse "taxada de omissa".
Em 29 de agosto, 24 horas depois de ter recebido o ofício da PF, o juiz autorizou a escuta por 30 dias. Apressado, o delegado Santos foi pessoalmente ao Fórum de Brasília retirar o ofício em que o juiz determina à Telebrasília (estatal de telecomunicações de Brasília), "em caráter sigiloso", a instalação do "grampo".
Instalação do "grampo"
Na Telebrasília, a ordem do juiz foi cumprida com naturalidade. Não havia o que estranhar. Só em 1995, a empresa recebeu cerca de 50 determinações de juízes autorizando escutas.
Em ofício ao delegado, o juiz Oliveira Filho ordenou que a PF lhe entregasse, semanalmente, as fitas resultantes da escuta e as respectivas transcrições. Ordem que foi sistematicamente descumprida pelo delegado Santos.
Na primeira semana, o delegado sumiu. O juiz estranhou. Na segunda semana, nada do delegado. O juiz foi se irritando. Na terceira semana, Oliveira Filho discou para a PF. Cobrou as fitas. Informou-se que o delegado estava viajando. O juiz disse que, ainda assim, queria as fitas.
No dia 21 de setembro, compareceu ao gabinete do juiz um agente da Polícia Federal. Não se tratava do delegado Santos. Não há no Fórum qualquer registro que traga o nome do agente federal. Trazia debaixo do braço um gravador e uma fita.
O juiz cobrou a transcrição. E o agente alegou que, com escassez de pessoal, a PF não havia conseguido transcrevê-las. Oliveira Filho trancou-se em sua sala com o emissário da polícia. Depositou o gravador sobre a mesa e pôs-se a ouvir a fita.
Estranhou o linguajar utilizado. Viu logo que os interlocutores não pareciam traficantes. Espantou-se com o trecho em que Júlio César acerta com a Embaixada do Brasil em Bruxelas detalhes de uma viagem do presidente Fernando Henrique e comitiva.
Suspensão da escuta
Ao perceber que havia autorizado o monitoramento de um alto funcionário do Palácio do Planalto, o juiz Oliveira Filho determinou a interrupção imediata da escuta telefônica, no mesmo dia 21 de setembro.
Um mês e 24 dias depois, a 16 de novembro, relaxado na sala de sua casa, o juiz ouviu da voz de Cid Moreira, no "Jornal Nacional da TV Globo, notícia sobre um novo escândalo. O locutor mencionou trechos das conversas de Júlio César.
Naquela mesma noite, o delegado Santos ligou para a casa de Oliveira Filho. Disse que nada tinha a ver com aquele vazamento. O juiz negou-se a falar pelo telefone. Marcaram encontro para a manhã seguinte. Encontraram-se num Fórum vazio. Era sábado. Falaram por quase uma hora, no gabinete de Oliveira Filho. O delegado sustentou a versão de que investigava narcotráfico. O juiz não acreditou.
Na última segunda-feira, ao ser procurado pela Folha para explicar a sua autorização para o "grampo, Oliveira Filho admitiu a possibilidade de ter sido usado para fins até então desconhecidos.

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