São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 1995
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Sontag ensina a superar o medo da Aids

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Livro: "Assim Vivemos Agora" (The Way We Live Now)
Autora: Susan Sontag
Tradução: Caio Fernando Abreu
Preço: não definido (55 págs.)

O impacto da Aids sobre a sociedade norte-americana foi objeto, nos anos 80, de dois textos muito diferentes da ensaísta e novelista Susan Sontag.
O segundo, lançado no Brasil em 89, é o ensaio "Aids e Suas Metáforas" (Companhia das Letras), no qual Sontag mostra como a doença serviu para difundir medos e preconceitos na era Reagan.
O primeiro texto, menos conhecido, chega às livrarias brasileiras na próxima terça-feira. Trata-se da pequena novela (ou conto longo) "Assim Vivemos Agora", na qual Sontag descreve as opiniões, sensações e reações de um grupo de amigos diante do fato de que um deles contraiu a doença.
A novela está sendo lançada numa edição de bolso, com tradução do escritor Caio Fernando Abreu.
É um texto escrito num tom nervoso, ágil, em que a voz de um personagem é o tempo todo perseguida pela voz de um outro ("fulano diz que sicrano acha que, um dia, beltrano disse que...").
Originalmente publicado em 1986 na revista americana "New Yorker", "The Way We Live Now" foi publicado pela primeira vez no Brasil com outra tradução ("O Modo Como Vivemos Hoje"), em fevereiro de 1988, no suplemento cultural "Folhetim", da Folha .
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que a escritora Susan Sontag concedeu na última quarta-feira, por telefone, de Nova York:

Folha - A sra. escreveu, nos anos 80, uma novela e, depois, um ensaio sobre Aids. A sra. acha que o preconceito contra a doença está diminuindo?
Susan Sontag - Acho que, nos EUA, diminuiu um pouco. Acho que hoje há menos pessoas que pensam na Aids como uma sentença de morte, como uma doença contagiosa, que você pode pegar por estar ao lado de um doente, ou dando as mãos, ou pelo ar.
Folha - Desculpe o jogo de palavras, mas a sra. acha que a maneira como vivemos agora é semelhante à da época (1986) em que a sra. escreveu "Assim Vivemos Agora"?
Sontag - A minha história se passa num ambiente relativamente sofisticado. Os amigos da pessoa doente moram em Nova York, assim como poderiam morar em São Paulo, ou em outra grande cidade. Não são pessoas provincianas.
Folha - São pessoas bem informadas.
Sontag - Relativamente bem informadas. Pessoas que moram em grandes cidades têm a oportunidade de serem -mas nem sempre são- bem informadas.
Ao saberem que um amigo está doente, a primeira reação dos personagens é de choque, tristeza e medo. Mas não é uma reação provinciana. Todos conhecem o homem, sabem que ele é bissexual. Isso não choca seus amigos, até porque alguns são homossexuais.
São pessoas cosmopolitas e não têm os preconceitos mais comuns. Ainda assim, e isso é muito interessante, mesmo neste mundo há pessoas que dizem: "Tenho tanto medo por mim." Ou: "Não sabia o que eu ia sentir ao vê-lo pela primeira vez." Ou: "Ele não mudou. Ele continua a mesma pessoa".
As pessoas precisam trabalhar muito para superar o medo que têm do doente. O doente inspira medo, assim como compaixão.
Quando tive câncer, eu sabia que algumas pessoas tinham medo de me visitar. Como se câncer fosse contagioso. É lógico que a pessoa sabe que isso não é verdade, mas não consegue superar o medo.
Folha - A sra. concorda que "Assim Vivemos Agora" é uma história sobre solidariedade?
Sontag - Eu usava a palavra "amizade" para falar do livro, mas "solidariedade" é melhor.
Folha - A solidariedade dos personagens em relação ao doente reflete a forma como a sra. via as coisas em 86 ou a forma como a sra. gostaria que as pessoas se manifestassem sobre a Aids?
Sontag - A história é baseada em experiências reais, inclusive uma situação que eu vivi, mas não a situação de doentes de Aids. No final dos anos 70, quando tive câncer, as pessoas me protegeram de uma maneira muito parecida.
Até alguns casos engraçados que estão no livro foram vividos por mim. Por exemplo, quando o personagem acorda e pede: "contem-me uma história", alguém responde: "você é a história". Isso foi dito a mim uma vez, por uma pessoa que estava ao meu lado, quando eu estava saindo de um estado meio de coma. Mesmo no meio do sofrimento, comecei a rir.
Ou seja, o livro é sobre Aids, mas não é apenas sobre Aids. É sobre doença, sobre a forma como as pessoas atendem, ou não, as necessidades de um doente, sobre solidariedade. Algumas pessoas são solidárias, outras, não.
Folha - A sra. sabe que esta tradução foi feita por um conhecido escritor brasileiro, Caio Fernando Abreu, que há poucos meses tornou público que é portador do vírus HIV?
Sontag - Sei e isso me emocionou muito. Não só porque ele é um conhecido escritor e a tradução, parece, está muito boa, mas porque ele leu a história há algum tempo e sugeriu a sua publicação.
O fato de essa história significar algo para o Caio -e que vai significar algo para outras pessoas porque ele fez a tradução- me deixa muito feliz e agradecida a ele.
Folha - Quando "Assim Vivemos Agora" foi publicado no Brasil, em 88, um jornalista escreveu que se tratava de "um ensaio disfarçado, a ficção como metáfora". A sra. concorda com essa avaliação?
Sontag - Não, de forma alguma. Ficção são muitas vozes, muitos pontos de vista. Um ensaio contém apenas um ponto de vista. Se tivesse que escolher entre os dois -e, basicamente, escolhi- sempre escolheria a ficção.
Por acaso, depois dessa história, escrevi um longo ensaio, "Aids e Suas Metáforas", mas foi exatamente para dizer coisas que eu não diria numa ficção. A ficção cria emoções, reflexões. É uma experiência emocional e linguística.

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