São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Eu, pecador, me confesso

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Outro dia, na seção de cartas, um bispo reclamava da avalanche de ateus na imprensa e, entre outros, citava meu ímpio nome. Atribuía-nos anticlericalismo e outras perversidades.
De fato, sou ateu com nostalgia de uma fé que nunca tive. O conceito de Deus nunca me penetrou nem mesmo nos quase dez anos em que estudei em seminário católico.
Desde cedo fui fascinado pelo ritual, suas expressões culturais e teatrais. Gosto sobretudo de alguns de seus santos, homens como eu, sujeitos aos mil acidentes da carne, que conseguiram se elevar da humanidade mofina através de um comportamento sobre-humano -sem nada terem do super-homem de Nietzsche nem das historinhas em quadrinhos.
Entrei para o seminário no final dos anos 30, as músicas que ouvia eram excelentes (Ary Barroso, Pixinguinha, Noel, Cole Porter, Trenet), mas lá no seminário me afundei no gregoriano, ouvi emocionado a "Messa pro Papa Marcello", de Palestrina, as cantatas de Bach, os deliciosos momentos de Frescobaldi e até mesmo as últimas produções da música sacra, a missa "Pontificalis" de Perosi, um veneziano que misturou Vivaldi e Puccini em melodias que até hoje, no meio do trânsito de uma cidade suja e violenta, criam um território onde posso ser feliz.
Daí o meu amor pelas coisas sagradas -sem que esse amor seja veneração e muito menos adoração. Em Roma, na igreja de Santa Agnese in Agone, há um estupendo altar de mármore muito branco, nevado, que me emociona. O próprio desenho da igreja, feito por Borromini, rival e desafeto de Bernini, tem muito a ver com minha vida sentimental e -pasmem!- sexual.
E sou devoto, mas devoto mesmo, de Santo Antônio e São José, sem falar em Maria, homens e mulher que tiveram carne e sangue, que viveram a contingência humana em sua plenitude.
O que me atrapalha é quando começo a pensar que o conceito de Deus pode estar atrás de tudo isso. Aí fico com raiva e tenho vontade de fazer um rompimento radical com a igreja que criou e generosamente me deu acesso a esse legado de amor e deslumbramento.

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