São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Do vaudeville aos atores cibernéticos

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Muito antes de se transformar no sofá psicanalítico do homem comum, o cinema foi apenas uma diversão como outra qualquer, uma atração de feira que provocava sustos e deslumbramentos na platéia. Desde o início um folguedo popular, como os espetáculos de mágica e os shows de vaudeville, seus imediatos ancestrais, não precisou de muito espaço na primeira infância, conviveu por uns tempos com nomes diferentes e se espalhou pelo mundo afora com a rapidez de uma epidemia. Em 1896, por exem plo, já se estabelecera na rua do Ouvidor, a mais badalada do Rio, com o nome de omniógrafo. Perdão, omniographo. Cinematógrafo, omniógrafo, kinetógrafo, animatógrafo --conhecemos todas as suas variações primitivas, geralmente alojadas em mafuás e cafés-concertos de nome europeu (Alcazar, Moulin Rouge), a conviver com pistas de patinação, tiro ao alvo, montanhas-russas e cantorias. Salvo engano, só não tivemos uma versão local do Hale's Tour, uma viagem na qual o viajante não saía do lugar. Sentavam-se todos no vagão de um falso trem, de cujas janelas se descortinavam paisagens dos cinco continentes. Aquele passeio ferroviário pelo Grand Canyon, na Disneylandia, é uma réplica incrementada do tour inventado por William Keefe, que o apresentou pela primeira vez há 91 anos na exposição universal de Saint Louis, em que a América também conheceu o cachorro-quente e a casquinha de sorvete.
A febre do negócio não durou mais de sete anos, três a menos que a voga dos nickelodeons. Assim chamado por oferecer sessões de cinema pelo preço de um níquel (cinco centavos de dólar). Teatros pequenos e desconfortáveis, quase sempre instalados onde antes funcionara um salão de dança, um restaurante ou uma mercearia, mais pareciam empórios de vaudeville. Funcionavam da manhã à meia-noite e ofereciam uma miscelânea de rápidas aventuras, comédias e fantasias, com mais ou menos uma hora de duração. As sessões começavam com um show de canções populares. Foi cantando num nickelodeon que o futuro chefão da Columbia, Harry Cohn, se aproximou do cinema. Nos seus nove anos de existência (1905-1914), o nickelodeon fez mais sucesso nos grandes centros urbanos do que todas as outras novidades da época. Com eles, o cinema pôs em prática um esquema de distribuição nacional e, dado mais importante, criou um público cativo.
Havia mais de 10 mil nickelodeons na América por volta de 1909, consumindo cerca de 200 rolos de filme por semana. Quase 80% dos seus frequentadores pertenciam às classes trabalhadoras. O povão lotava os nickelodeons porque em nenhum outro lugar se divertia tanto por tão pouco. As chamadas elites, como de costume, torciam o nariz. Preocupados com a expansão dos negócios e seus dividendos sociais, exibidores e produtores desviaram sua atenção para outra classe de espectadores. Resumindo: afastaram-se do vaudeville, aproximando-se do teatro e de autores prestigiosos como Shakespeare ou Zola. A Vitagraph ousou concentrar a tragédia de Eletra em um rolo. Às mesmas dimensões reduziram-se as peripécias de "Hamlet" e "Tanhauser". Tudo em nome de um objetivo: dar às imagens em movimento (motion pictures) o status de alta cultura. "Precisamos acabar com a favelização do cinema." Foi mais ou menos com estas palavras que um dos mais venturosos proprietários de nickelodeons, Adolph Zukor, futuro chefão da Paramount, preconizou a histórica guinada. Alguns nickelodelons de Zukor passaram em 1913 por uma reforma em regra, oferecendo muito mais conforto e elegância a um público que, afinal, não se mostrou tão assíduo quanto o que havia sido afugentado pela "refinamento" da programação e, sobretudo, pela alta no preço dos ingressos. Até que, no ano seguinte, quase todos fecharam as portas.
Dali em diante, e por muito tempo, o cinema usufruiria de novos espaços, exclusivamente projetados e construídos para as suas necessidades específicas. E também para as suas extravagantes veleidades faraônicas. Chegara a era dos "movie palaces", das salas monumentais e luxuosíssimas, bem ao gosto da sociedade emergente e mais adequadas ao tipo de filmes que Hollywood passaria a produzir -mais caros, mais longos, mais pomposos.
Não surpreende que as primeiras salas de exibição suntuosas e as primeiras estrelas tenham surgido simultaneamente. Os mitos precisam de templos. Aos seus o cinema ofereceu o que de mais espetacular o dinheiro podia construir. E todos nós nos convertemos ao novo culto. Quando algo o ameaçava, uma novidade lhe recompunha a hegemonia. Em 1927, o som; em 1935, o primeiro filme em cores; em 1952, o cinerama; em 1953, o cinemascope e a 3ª dimensão; em 1975, o sensurround; mais tar de, o dolby. Ainda é a maior diversão, mas perdeu um bocado de fiéis. Golpeado pela televisão e ameaçado por outras formas de lazer doméstico, o cinema chega aos cem anos sem a soberba de antanho. Milhares de templos foram fechados, mas novas e revo lucionárias tecnologias, desenvolvidas a partir das experiências de George Lucas em "Guerra nas Estrelas", asseguraram a sua sobrevivência por mais algum tempo. "Não há nada que não se possa fazer num filme", assegura Scott Billups, um dos atuais gênios da computação gráfica. Até criar atores e atrizes virtuais, que sintetizem as virtudes físicas das maiores estrelas da tela, já se tornou possível. Tão espantosa e assustadora bruxaria -em princípio vantajosa para os produtores, que passariam a contar com intérpretes que nunca adoecem, não dão chilique, estão sempre a postos, não engordam, não envelhecem e não pedem aumento de salário- pode gerar um novo tipo de estrelismo. Quem sabe o único compatível com o cinema previsto para os próximos cem anos: um espetáculo exclusivamente doméstico e interativo, simultaneamente assistido por milhões de almas solitárias, cheio de som e fúria, significando nada.

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