São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Usina tropipaulista

JÚLIO MEDAGLIA

Coerente com sua vocação de atrair povos, mesclar costumes e comportamentos e provocar entre eles um excitante e criativo intercâmbio, São Paulo soube também na área cultural catalizar idéias e ações em momentos sensíveis deste século. Já a "Semana de 22" assumia uma nova postura intelectual em nossas artes ao propor uma cultura brasileira a partir de uma ótica universal, não provinciana. Quando o nosso teatro resolveu se universalizar e adquirir o know-how dramatúrgico contemporâneo, encontrou no TBC o laboratório ideal. Quando ele se politizou, aqui estava o teatro de arena e quando todos os conceitos de representação foram pelos ares, o Oficina foi o palco -ou o anti-palco. No momento em que se pretendeu industrializar o cinema nacional, foi com os esforços das companhias Vera Cruz e Maristela. Na arquitetura, desenvolveu-se em São Paulo um raciocínio de soluções habitacionais efetivamente sistemicas com Artigas, Levi, Candia ou Warschwchik, sem esquecer o genial anarquista Flávio de Carvalho. Partiu de São Paulo, também, o mais revolucionário questionamento da poesia através de um movimento que se internacionalizou com o nome de posia concreta, liderada pelos irmãos Campos e Décio Pingnatari.
E se a bossa nova nasceu nos casulos do Rio-zona sul, foi em programas da TV Tupi (João Gilberto), TV Paulista (O Bom Tom) e no Picape do Picapau, com Walter Silva, na Rádio Bandeirantes, que ela se popularizou nacionalmente. Foi também pelas ondas da TV Record, de São Paulo, que a música popular de vanguarda recebeu um tratamento adequado e a devida veiculação por meio dos festivais. Foi aí também que a Jovem Guarda encontrou seu espaço para promover a mais radical, simpática e bem-humorada reforma de comportamento.
Assim sendo, o mais abrangente acontecimento cultural emergido da área da música popular, o tropicalismo, só poderia mesmo é ocorrer em Sampa. Sua provocação que se estendia por toda a movimentação cultural viva da época, reunia a música fina e cafona, a poesia de cuica de Santo Amaro e a poesia concreta, o berimbau e o teremin, a música eletrônica e o bandolim, a crônica social e o intimismo, o sério e o deboche, a vanguarda e o tradicional, o vocal e o instrumental, o experimentalismo sonoro e o desbunde cênico, o universal e o regional e tudo, enfim, que passasse perto (ou longe).
Em pouco tempo o consumo tornou-se maior que a produção. Como a abertura proposta pelo tropicalismo era grande demais, deixando as mentes excitadas por um rico universo musical-psicodélico, e o retorno da produção foi aos poucos deixando de corresponder às expectativas, não tardou a chegar um profundo marasmo (nos anos 70 devidamente embalados por melodolorosos boleros em todos os ritmos). Aí as lideranças tropicalistas voltaram às suas origens ou foram para o Rio. De vez em quando eles aqui aparecem para faturar os juros da produção do passado, em espetáculos de rara tietagem, que nada lembram o feitiço e o poder detonador de idéias de outrora.
São Paulo aqui permanece no aguardo de novas idéias para que possa exercer, mais uma vez, sua inconfundível vocação de mais criativa usina cultural do país.

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