São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Histórias de perto do lugar

TOM ZÉ

No começo de 69, eu, Caetano, Dedé e Gal resolvemos ir ao Ipiranga, um cinema próximo da esquina com a São João, onde será o show de dezembro. Compramos o ingresso e tudo bem, mas na entrada o porteiro: - Epa, o senhor não!
Caetano não pôde entrar porque estava de sandália. Assim, o show teve seu prefácio há 26 anos.
A calça
Gal combinou comigo: - Tom, vamos amanhã, pra cidade, que eu quero fazer umas compras?
Fui buscá-la no Excelsior de manhã e saímos. Ela usava uma calça curiosa: as pessoas começaram a nos abordar com agressividade, a Gal e até a mim, por estar com ela. Falavam com Gal num tom de paquera indelicada, grosseira. Por fim nós entramos numa loja. A dona nos levou para um canto e disse a Gal: - Olha, aqui em São Paulo moça não anda de calça.
Nós já estávamos assustados, compreendemos e pegamos um táxi pra voltar pra casa. O chofer nos levou, mas ficava olhando, meio que dizendo umas pornografias, uns nomes feios, pra mostrar que estava por dentro da civilização e que no carro dele não entrava qualquer pessoa.
O paletó
As pessoas naquele tempo usavam paletó. Não só porque era mais decente no centro da cidade, mas também porque em São Paulo o calor não era tão forte.
Nós chegamos da Bahia, não é, com aquele jeito, aquela voz um pouco parecida com a voz de baiano que vocês ouvem às vezes nas novelas, aquelas roupas, uma certa timidez. Na Bahia, quando você quer tratar alguém com toda a delicadeza, você faz o que repetíamos aqui em São Paulo, ao pedir alguma informação: a gente chegava junto da pessoa, punha a mão no paletó e dizia: - ô neguinho, por favor, me informe onde é tal rua assim assim.
Logo vimos que o "delicado" da Bahia aqui era o desastrado.
Autora dos tempos
O Teatro de Arena nos trouxe para fazer Arena Canta Bahia. Os rapazes ficaram hospedados num hotel da avenida Rio Branco. E as meninas Gal, Bethânia, nos Apartamentos Excelsior, não sei bem como era o nome.
Caetano teve uma gripe com febre, que complicou, ele demorou a ficar bom. Bethânia resolveu visitá-lo pra ver se ele precisava de médico, de alguma coisa. No hotel não permitiram absolutamente que ela subisse.
Na época a prostituição da rua Aurora tinha sido proibida, o que criava certo tipo de problema na cidade e um hotel, pra ser respeitável, não podia permitir nem que mãe visitasse filho, quanto mais uma pessoa que chegasse dizendo ser irmã. Nem com documento identificador.
A língua
No princípio, como é sempre um pouco, até hoje, a gente fazia questão de falar os "és" abertos, os "ós" abertos, que é a pronúncia do Nordeste. Mas um dia, deprimido, entrei num táxi e resolvi não falar de modo tão baiano: - Por favor, rua Conselheiro Brôtêro.
O chofer demorou um pouco, olhou pra mim e perguntou: -Você quer dizer rua Conselheiro Brôtéro? - Então eu vi que tinha escolhido a única ou uma das pouquíssimas palavras que aqui se falam com as vogais abertas.

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