São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Déficit e culpas

FABIO GIAMBIAGI

É mais cômodo martelar um chavão do que fazer uma análise profunda dos fatos
Goebbels, o ministro da Alemanha nazista, dizia que "mil mentiras fazem uma verdade". No debate atual sobre a política fiscal, há um maior grau de civilidade, no sentido de que não matam-se judeus nem queimam-se livros na rua.
Entretanto, há uma curiosa mentira que foi "comprada" por muitos e hoje é corriqueiramente repetida na imprensa ou em reuniões de especialistas de conjuntura. Trata-se da idéia de que a culpa do déficit público é exclusivamente do Ministério de Planejamento e Orçamento (MPO).
A tese de que "o Banco Central é obrigado a praticar juros elevados porque o MPO deixou as contas fiscais escaparem ao controle" lembra a crença das crianças em Papai Noel.
Elas acreditam na sua existência "porque o pai falou" ou porque "ele me deixou um presente". A criança muito pequena prefere conviver com a fantasia e não quer se arriscar a explorar os caminhos da dúvida, indagando o porquê de se acreditar na existência de alguém que nunca foi visto.
Da mesma forma, no mundo atual da simplificação da notícia, onde a versão vale mais do que o fato, é mais cômodo martelar um chavão do que fazer uma análise profunda do que quer que seja.
Vejamos os grandes números. Entre janeiro e setembro de 1994 e de 1995, as contas consolidadas do setor público passaram de um superávit de 2% do PIB para um déficit de 4,4% do PIB. Trata-se de uma piora extremamente preocupante. É um dado, sem dúvidas, desconfortável.
Uma coisa é reconhecer isso. Outra completamente diferente, porém, é julgar que o fato "é culpa do MPO". Tal afirmação equivale a dizer que a culpa pela crise do Flamengo "é do goleiro" ou "é do Edmundo".
A simplificação feita por meio da "fulanização" dos problemas pode ser útil para canalizar as emoções no futebol, para tornar uma matéria jornalística mais compreensível para os leitores ou para facilitar a "queimação" política de alguém. Muitas vezes, porém, a simplificação entra em conflito com o rigor. A situação das contas fiscais em 1995 parece ser um caso típico disto.
Do déficit de 4,4% do PIB, 2,7% do PIB são de Estados e municípios, e 0,9% do PIB são das empresas estatais, sendo os restantes 0,8% do governo central. Já esse simples dado dá uma idéia clara de que responsabilizar o MPO pelo déficit de 4,4% é algo que merece uma melhor justificativa.
Um leitor mais crítico pode dizer: "Bom, mas, afinal de contas, as estatais dependem do controle da Sest, que é do MPO, logo este é responsável por um déficit de 0,8 + 0,9 = 1,7% do PIB".
Nosso irado amigo, porém, estaria deixando de considerar que, nas estatísticas oficiais, o conceito de "estatais" abrange também as empresas estaduais e municipais. Mais ainda: entre 1990 e 1994, as empresas estatais estaduais e municipais tiveram um déficit médio de 0,6% do PIB, enquanto as empresas federais ficaram próximas do equilíbrio.
Este ano os resultados deverão, a grosso modo, se repetir, com as empresas federais em equilíbrio e as empresas estaduais/municipais tendo um déficit operacional de 0,5% a 1% do PIB.
Já meio confundido com o contraste entre os números e as suas afirmações, dirá o nosso leitor: "Tubo bem, que seja, mas o déficit de 0,8% do governo central, esse sim, é culpa do MPO".
Analisemos isso com calma. Sobre que variáveis os Ministério da Fazenda e do MPO têm controle, uma vez iniciado o exercício fiscal? Sobre as chamadas "outras empresas de custeio e capital" (ou, como se diz no jargão, OCC). Pois bem, de quanto foi o crescimento real dessas despesas em 1995? Resposta: 10%.
Dirá, então, o nosso crítico, exultando: "Não falei que vocês estavam deixando o gasto solto?". O leitor teria certa razão, se não fosse o fato de que essa rubrica, em 1994, representou 2,5% do PIB. Portanto, em 1995, o peso dela, supondo um crescimento do PIB de 4%, seria de 2,5 x 1,10/1,04 = 2,6% do PIB. Conclui-se que o aumento de gasto desse item atingiu o "impressionante valor de 0,1% do PIB.
Achando, nessa altura, que há um certo exagero em acusar o MPO por uma variação fiscal de 6,4% do PIB, quando ele só foi diretamente responsável -em conjunto com o Ministério da Fazenda- por um "delta de 0,1% do PIB, indagará nosso leitor, perplexo: "Mas, então, o que foi que piorou as contas do governo central?". Resposta: as despesas com juros, com as transferências constitucionais a Estados e municípios, com benefícios previdenciários e com pessoal, que tiveram aumentos reais de 49%, 43%, 32% e 30%, respectivamente.
Já chocado, nosso leitor ficaria estupefato se, porventura, tendo uma aplicação em algum fundo de commodities e sendo aposentado, concluísse que, de certa forma, a piora das contas do governo espelha o ganho, entre outros, dele mesmo -o nosso crítico!
Note-se que: (i) a despesa de juros aumentou em função dos problemas de balanço de pagamentos e do desejo do governo de reduzir a velocidade de crescimento da economia; (ii) as transferências são determinação constitucional; (iii) os benefícios cresceram devido ao aumento do salário mínimo e à decisão política de estendê-lo a todos os benefícios previdenciários; e (iv) o gasto com pessoal subiu pela combinação de aumentos concedidos em 1994, do reajuste de janeiro definido nas regras de criação do Plano Real, da queda da inflação e do crescimento vegetativo associado à incorporação de novas vantagens definidas em lei. Todos esses, enfim, fenômenos alheios à responsabilidade estrita do MPO.
Não se quer, com isso, diminuir responsabilidades: o governo, em conjunto, cometeu alguns erros. De qualquer forma, o importante é perceber que: (a) o governo central é apenas uma das esferas em que se decompõe o setor público; (b) o MPO é só um dos agentes envolvidos no processo fiscal federal; e (c) os fatores mais importantes de incremento do gasto em 1995 foram alheios ao controle do MPO.
No campo das contas públicas, há muitas coisas a serem corrigidas. O governo tem, também, muito a aprender com as críticas. A melhor forma de ajudar, porém, é ver, item por item, onde o governo poderia cortar as despesas.
Cada um é livre de escolher, simplificadamente, um único culpado, como se a economia fosse um ritual "voodoo" -desses em que um boneco é espetado até exorcizar o mal personificado por alguém.
Isso, porém, não vai ajudar em nada para o entendimento da natureza dos problemas e a identificação da sua solução. Afinal de contas, em matéria de déficit, "o buraco é mais embaixo".

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