São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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o macho perdido

SÉRGIO DÁVILA

Como ser homem nos anos 90?
O mundo pós-feminismo não é um lugar tranquilo para alguns desses seres. Símbolos tradicionais da masculinidade estão em xeque. O marido não precisa, ou não consegue, mais prover sozinho a família, o amante não pode mais desconhecer o prazer da parceira, o pai não pode mais colocar a responsabilidade da criação nas mãos da mãe.
Em lugar dos velhos modelos, vagam, ou melhor, se arrastam machos perdidos. Criados sob o padrão anterior, vivem num meio que não entendem. "Os machos são anacrônicos no tempo da Internet e da globalização", diz o psicólogo Sócrates Nolasco, fundador do Núcleo de Pesquisa sobre o Comportamento Masculino.
"Porque tenho pênis"
"Esse modelo produziu bons trabalhadores, e só", decreta o médico e sexólogo Moacir Costa. "Foram pais de segunda categoria e amantes ansiosos, com ejaculação precoce."
"O machismo tinha a ver com a profunda e muito eficaz rejeição do feminino no homem!", acredita o terapeuta junguiano Gustavo Barcelos. "Era fruto de questões culturais de nossa sociedade ocidental".
"Mas começa a haver um questionamento", diz Nolasco. "Quando entrei nessa área, em 1985, discutir a masculinidade era discutir sexo", lembra. "Fiz uma pesquisa com homens entre 25 e 35 anos, na qual perguntava: 'Por que você se sente homem?'". A resposta, quase sempre: "Porque tenho pênis".
Um dos primeiros workshops sobre esse assunto, em 1986, dado por Moacir Costa, chamava-se "Macho, Masculino, Homem", que depois virou livro: "Dos 600 participantes, 400 eram mulheres", diz ele.
Hoje, a cada dez pacientes atendidos em seu consultório, sete são homens. "O sujeito está confuso, sabe que existe alguma coisa estranha, mas não consegue definir", diz.
João de Ferro
A dúvida geral ganhou força nos Estados Unidos. No início da década de 90, a inquietação gerou vasta literatura. Títulos como "Um Tempo de Heróis Caídos", "O Mito do Poder Masculino! e "Porque Homens Odeiam Mulheres" pipocaram.
Mas três foram emblemáticos. Um deles se destacou pelo pitoresco: "O Fim da Masculinidade", de John Stoltenberg, teórico do politicamente correto, o mesmo que cunhou as expressões "humanos nascidos com pênis" e "humanos nascidos sem pênis" em lugar das "preconceituosas" palavras homem e mulher.
Por gente séria, Stoltenberg foi considerado um bobo. Pelos homens em crise, um traidor da causa -ele é também o fundador da liga Homens Contra a Pornografia, de caráter feminista e censório.
O outro acaba de chegar ao Brasil e tem um nome curioso: "Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus", do terapeuta de casais John Gray. Espécie de auto-ajuda da guerrilha, proclama o óbvio: os sexos são determinantes e diferentes.
Por fim, aquele que foi adotado como a "Bíblia" desse novo homem norte-americano: "Iron John - A Book About Men" (João de Ferro - Um Livro sobre Homens), do poeta Robert Bly. Nele, o autor resgata um conto dos Irmãos Grimm, do homem selvagem que vivia num pântano, e teoriza em cima.
Em volta da fogueira
Mal-recebida pelo meio acadêmico, a obra tem o mérito de refletir o que já acontecia de fato. Em várias cidades norte-americanas, grupos de homens, executivos bem-sucedidos, profissionais liberais, pais de família, todos em crise, se reúnem em busca do mítico homem original.
Acreditam estar tão fragilizados que só um reencontro com a origem poderia lhes devolver o equilíbrio. Vestidos com peles, cantam em volta de uma fogueira, dormem em palhoças, caçam e comem, bebem, se abraçam, gritam e choram muito.
O princípio virou filme: "Amigos para Sempre", em que Billy Cristal entra em conflito com seu papel na sociedade, abandona a família e foge da cidade por uns tempos. Vira caubói, ciceroneado por Jack Palance, e volta para a casa em paz consigo mesmo e com o novo mundo.
"Esse é o 'american way', o jeitinho norte-americano de tentar resolver o problema", diz Sócrates Nolasco, autor também dos livros "A Desconstrução do Masculino" e "O Mito da Masculinidade".
"Mas cada país está descobrindo uma forma própria. No Canadá, por exemplo, a união vem se dando por meio de ONGs, organizações não-governamentais, com interesses específicos -Homens Divorciados, Homens que Querem a Guarda de Filhos, Homens contra a Violência.
Crise é doença
E no Brasil? "Aparentemente, somos um país jovem, criativo, de futuro, não?", pergunta Nolasco. "Não", responde, em seguida, "a realidade é mais embaixo. O Brasil é um país autoritário e conservador".
Segundo o psicólogo, a coisa aqui é mais individual e dissimulada. O equivalente aos joões de ferro americanos e às ONGs canadenses são os analisados. "As crises do homem são tratadas como 'doença' e encaminhadas ao consultório do psicanalista", diz. Nada de grupos.
Ou isso, afirma o psicólogo, ou a coisa descamba para a leviandade e a piada fácil. "Aí, o exemplo acabado são as piadas sexistas do grupo 'Casseta & Planeta'", diz. "Por trás de uma máscara de 'TV de vanguarda' se esconde o pensamento mais comum e arcaico do brasileiro."
E o pai?
Entre as queixas, a mais comum parece ser o quão complicado é ser pai nesses dias. "Principalmente se for ex-marido", diz Malcom Montgomery, ginecologista e especialista em reprodução humana. Montgomery é autor do livro "O Novo Pai", e conta seu caso, ilustrativo:
"Eu quis ter meus dois filhos, convenci minha mulher à época. Ela teve depressão pós-parto nas duas vezes. De madrugada, odiava ter de dar mamadeira, trocar fralda, eu fazia isso feliz. Um dia, nos separamos. A Justiça deu a guarda para ela. Só posso visitá-los nos dias que ela quer. Está certo isso?"
A pergunta joga lenha na fogueira. E é só uma das que os homens começam a se fazer mais e mais. Não há respostas prontas, como mostram os quatro depoimentos a seguir, mas a reflexão está ganhando força.

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