São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
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Há um Pão de Açúcar em nossas almas

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quando acabou de passar a marcha contra a violência, fiquei parado na rua olhando os papéis que voavam. A marcha passou e ficou um eco no vento da avenida Rio Branco. Eu pensei: e agora? Estava diante do Insolúvel. Sempre que venho ao Rio, me sinto diante do Insolúvel.
Na avenida vazia, eu voltei no tempo.
Nesta avenida, em 68, passaram os Cem Mil da passeata que marcou o fim da liberdade. Um detalhe ajudou a trazer a ditadura... Nunca me canso de contar isso. Foi o dia em que eu entendi que a luta política e loucura se casavam. Era o auge dos protestos. Costa e Silva, presidente duro mas com traços populistas, tinha cedido. Sentiu que a opinião pública tinha força. E resolveu receber a Supercomissão de estudantes e intelectuais para dialogar. E aí, aconteceu o fato mais louco (quem lembra?). Os estudantes e intelectuais, na hora de entrar no Palácio, se recusaram a botar paletó e gravata. Criou-se uma briga terrível na porta, azedando a conversa com Costa e Silva, que acabou dando murros na mesa. Voltaram os estudantes berrando de triunfo: "Nos recusamos a botar gravata! Somos livres!" Dias depois estava decretado o ato nº 5, acabando com todas as liberdades por vinte anos. Rio Branco, avenida das ilusões e lutas. Vejo os soldados a cavalo partindo para cima de nós com espadas nuas, batendo de chapa em minhas costas. Lembro de Vianninha entrando em cana e o policial perguntando: "Profissão?" "Ator". "Olha aí, tenente, além de comunista, é viado!" Lá eu vi o Rio mudar, de marcha em marcha. Será que eu amadureci? Será que o Rio amadureceu?
A paz e a culpa
Achei linda a marcha branca da paz, o sino batendo nas mãos de Betinho, gente cantando, unidos contra o "mal". Mas, não posso deixar de me perguntar: Como faremos para mudar? Os slogans são dirigidos contra quem? Os cantos, as faixas condenam quem? Os violentos, tudo bem. Mas não somos todos violentos? Será que as famílias chorosas já haviam pensado nos favelados? Sempre parece que o problema são os outros, vagos fantasmas chamados "eles". E nós, qual é a nossa culpa nisso tudo?
Qual é o problema principal do Rio?
O problema principal, o mais difícil de mudar, o Pão de Açúcar de nossas almas é a fixação nos gestos simbólicos.
Minhas perguntas voavam como papéis no vento. Como evitar que esta marcha bonita seja apenas uma purificação de almas burguesas, para depois tudo continuar igual? Como mudar o Rio sem deixar de ser Rio? Como injetar um pouco de alma "americana" nesta cidade portuguesa, marítima, ex-reino, ex-capital, ex-boêmia, ex-tudo? Como transformar o malandro carioca em um pragmático pós-pós? Como tirar o sujeito da praia e botar gravata? Como acabar com a nossa poética falta de responsabilidade? Como (o mais difícil) acabar com a tradição escravista da elite carioca, ociosa, disfarçada de boêmia, cruel e desatenta? Como nos fazer desamar símbolos e ilusões, mantendo a utopia? "É muito chato", pensam os cariocas que não têm saco para os detalhes e que só gostam das idéias gerais rápidas e "profundas". Ah, o amor português para o abstrato, ah o horror português às coisas práticas! Como injetar em nossas almas uma visão mais "calvinista da vida"?
Vejam as brigas em torno da marcha. De um lado, os organizadores queriam elidir o poder constituído e encontrar uma solução além-real, a visão "Over the rainbow": "além do arco íris há uma sociedade mais justa". Do outro lado, estão os poderes de Cesar e Marcello, prefeito e governador, enciumados e desconfiados desta sociedade civil que quer autonomia. Ou seja, duas abstrações se opondo em direção ao esquecimento.
Lição dos bandidos
Só a miséria armada nos ensina que não bastam símbolos e palavras de ordem. Os bandidos nos ensinam a vida prática, mas nossa visão voluntarista ainda permanece.
O Rio é visto pelo país todo também erradamente. Somos considerados criativos e malemolentes, quando hoje estamos apenas mal informados e sem inspiração. Hoje, somos malandros com o terno esfarrapado, a navalha sem aço e o chapéu panamá rasgado.
E temos de continuar nesta "originalidade" que é a nossa maldição. O espírito carioca é individualista, malandro, fugindo do trabalho desde os tempos das "Memórias de um Sargento de Milícias". Nossa lenda e charme vem deste lado pícaro, saltitante, bailarino que foi o heroísmo contra a sordidez burocrática portuguesa, esta lírica alegria de viver, mesmo sob o tacão da burrice colonial. Como reverter o espírito carioca, sem deixar de sê-lo? Não podemos ir "pedir dinheiro ao governo federal, apenas.
A própria idéia de ir pedir dinheiro ao governo é carioca, como é carioca achar que empresários bonzinhos vão "adotar" o Rio.
Temos de ir mais longe. Temos de sofrer uma mudança estrutural forte. Precisamos de cinturão industrial em volta das baixadas e favelas, precisamos de uma forma nova de "zona franca fiscal ou algo assim; precisamos de um estímulo a investimentos que gerem uma infra-estrutura produtiva. Quero líderes como o Eliezer Baptista. Esta é a encrenca: Rio tem de deixar de ser Rio para voltar a ser Rio. A própria idéia de que precisamos "salvar" a cidade é utópica e impaciente.
A idéia de que há uma solução para o Rio é errada. A idéia tradicional de "solução" é arcaica. O Rio tem de raciocinar em cima de um luto, de uma aceitação do Insolúvel. O Rio precisa de um outro rumo, de uma nova vocação produtiva, de uma nova personalidade produtiva, de uma nova personalidade. De helicóptero, podemos ver o Insolúvel. Vejam os milhões de favelados. Vocês acham que com verbas assistenciais e caninhos de esgoto se reverte esta tendência? Talvez quarenta anos atrás... Hoje, o que resolve é uma paciente e forte reversão nos modos de produção do Estado, lentamente erodindo a resistência da miséria implantada. E tem mais: só se o governo federal acreditar e investir maciçamente no Rio; como prioridade nacional. A salvação do Brasil passa pela salvação do Rio, me disse o empresário Jovelino Mineiro. Ou o governo acredita nessa emergência ou nada. Ninguém nos dará ajuda. O Rio não precisa de verbas; precisa de Produção.
Para chegar a lutar por isto, precisamos aprender a mudar. Para mudar, precisamos de uma autocrítica. E quem esta a fim de fazer autocrítica, com esta praia e esta paisagem?
Estas coisas graves eu pensava na rua vendo afastar-se o vulto de meu avô.
E também tive medo de morrer e nunca mais andar pela av. Rio Branco.
Como vai ser a avenida Rio Branco no futuro?

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