São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Rio cheira e berra

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA - Se cidade tivesse sexo, o Rio seria uma mulher de beleza inaudita. No Pão de Açúcar, os seios. Nas bordas, banhadas de sol e mar, as formas arredondadas. Maravilhosa, como bem diz a música.
Mas há algo em desacordo na fisionomia do Rio. A cidade exibe um rosto em transe. Um semblante tormentoso. A boca e o nariz da cidade não se entendem.
À noite, o Rio sorve, a narinas ambas, a cocaína que robustece o tráfico. No dia seguinte, a cidade põe os pulmões pela boca em gritos pela paz. Desfila em passeata jargões contra a violência supostamente patrocinada por traficantes.
Disse "supostamente" e sinto a necessidade de uma explicação: não é o tráfico que financia a violência carioca. Não, não. O que move as engrenagens da insensatez é o vício de Copacabana, a licenciosidade do Leblon, a devassidão de Ipanema.
O Rio que paga a carreirinha de coca é o mesmo Rio que foge do sequestro, eis a verdade. Diz-se que a violência vem do morro. Bobagem, tolice. Como a passeata do Reage Rio, a violência também é obra do carioca bem-posto.
Ao abrir a carteira para o traficante, a cidade que cheira mostrou que tinha caixa para mais. Guloso, o tráfico já não se satisfaz com o comércio de papelotes. Quer mais. Exige o resgate do sequestro. É a lógica neoliberal transposta para o mercado do crime.
Ouça-se o que disse o empresário Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira depois que o flagelo do sequestro invadiu sua casa, vitimando um filho: "Se não tem mercado consumidor das drogas, não tem traficantes. A droga é cara. A elite é que consome as drogas".
Dois dos objetivos palpáveis do Reage Rio são o reaparelhamento da polícia e a urbanização das favelas. Erraram de alvo. Estão mirando na direção errada.
Antes de abrir a boca, a elite carioca bem poderia fechar o nariz. Antes de socorrer o morro, deveria ajudar-se a si própria. Pouco adianta dar novos 38 à polícia se não for interrompido o fluxo de dinheiro que garante os AR-15 do tráfico.
Volto à imagem do início: se cidade tivesse sexo, o Rio, síntese do Brasil, seria uma mulher maravilhosa, violada por uma elite que não a merece.

Texto Anterior: Droga, de volta
Próximo Texto: Funk cidadão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.