São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Como reformar Estado não é consenso

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Para quem quer que tenha imaginado este fim de século como um "fim de História" sem graça, as coisas até que estão sendo bastante emocionantes. Acumulam-se obstáculos ao que parecia uma consolidação tranquila do neoliberalismo, tido como adesão irrestrita às chamadas leis do mercado.
Visto de outra forma, pode-se dizer que se reformar o Estado tornou-se um consenso nas últimas duas décadas, o consenso sobre como fazê-lo ainda parece distante. Aos números, pois.
Existem muitas formas de medir a participação do Estado na economia. Um conceito simples é usar a participação dos gastos do governo no produto (vamos usar os dados relativos a 1980 e 1993). Para os Estados Unidos, onde as empresas estatais estatais não respondem por mais que 1% da atividade econômica, os gastos públicos passaram de 21,7% para 23,8% do PIB.
Na França, em estado de greve contra o desmonte da proteção social, os gastos públicos passaram de 39,3% para 45,5% do PIB. Sem esquecer a Inglaterra, modelo universal de privatização e desregulamentação, onde os gastos públicos passaram de 38,2% para 43,4%. O déficit público subiu, no mesmo período, nos três países.
Aviso aos navegantes: no Chile, a participação dos gastos públicos no PIB caiu de 29,1% para 22.6% e o superávit fiscal, embora declinante, foi mantido. Afinal, alguém tem de seguir a receita! Os dados são do Banco Mundial.
Vale a pena dar uma olhadinha nos dados dos asiáticos. Cingapura: de 20,8% para 19,7%; Coréia do Sul: de 17,6% para 17,1%; Malásia: de 29,6% para 26,7%. Ou seja, por ali a idéia de contenção do gasto público não foi exatamente um sucesso entre 1980 e 1993, uma década tida e havida como de enxugamento universal do Estado.
Mas há um dado curioso, para dizer o menos, escondido nessas estatísticas. Examinando-se a destinação dos recursos por categoria de gasto, especialmente para os países desenvolvidos, impressiona a queda dos gastos em itens como despesas militares, educação e gastos sociais, enquanto cresce uma rubrica aparentemente inocente, "outros". As notas técnicas do Banco Mundial explicam que nestas "outras" despesas estão incluídos os gastos com juros.
Eis os números, ainda para o período entre 80 e 93: para os EUA, vão de 18,2% para 23,7% do total dos gastos públicos; para a França, de 15,6% para 20,4%; na Inglaterra, de 32,9% para 33,7%; para a Alemanha, de 12,6% para 20,4%; para a Dinamarca, de 30% para 35,7%. No Brasil, de 36% para 51,1%.
Agora, a evolução dos gastos com previdência, habitação e outras políticas sociais: nos EUA, de 37,8% para 31,7% do total gasto pelo Estado; na França, de 46,8% para 45,5%; na Alemanha, de 49,6% para 45,9%; na Espanha (onde o desemprego explodiu), essas despesas de ordem social caíram de 60,3% para 38,8% do orçamento (as "outras" despesas ampliaram sua participação de 14,8% para 37,4%).
O retrato parece inequívoco: o chamado desmonte do Estado, a liberalização em nome da competitividade, a flexibilização do mercado de trabalho, a redução dos gastos sociais corresponderam, na prática, a um aprisionamento dos Estados numa ciranda financeira de proporções planetárias.
As manchetes das últimas semanas, diante desses números, talvez ganhem novo significado. Nos EUA, como na França, estão em jogo direitos sociais aos quais talvez se contraponham não apenas ou primordialmente os desafios da competitividade, mas sim interesses da elite rentista e especulativa.
Será, por acaso, que os poloneses rejeitaram o Lech Walesa que um dia empunhou a bandeira da solidariedade em favor de um ex-comunista? Será, por acaso, que em outras economias em transição ocorra uma frustração análoga com os apóstolos do fim da História?
Em termos de reforma do papel do Estado, acho que na verdade a "História" mal começou.

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