São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

Se Jackie pôde amar alguém, foi Bob Kennedy

GORE VIDAL

Nos fins de semana, a casa ficava cheia de pessoas, muitas das quais nenhum de nós conhecia. Todas as manhãs, quando o dia clareava, um beagle que morava ao norte de Malibu dava início a uma longa marcha rumo ao sul, arrebanhando todos os outros cachorros no caminho.
Este beagle era um líder e tanto, e nosso spaniel preto sempre ia correndo juntar-se a sua legião. Os cães sumiam o dia inteiro; jamais descobrimos aonde eles iam. Mas à hora do pôr-do-sol, exaustos, todos voltavam para casa.
Já que o assunto é cachorros... Nosso primeiro spaniel foi partido ao meio em Edgewater por um trem da Central de Nova York. Então Joanne nos deu dois filhotes, um preto e o outro louro. O louro era hermafrodita, e viveu pouco. O macho teve uma longa e pantagruélica existência, vindo a falecer uma madrugada, quando roía ossos na sacada do Grand Hotel de Florença e caiu lá do alto; encontramos seu corpo no Lungarno na manhã seguinte. Harold Acton adorava inventar que depois fomos a sua vila, La Pietra, nos arredores de Florença. "E, é claro, vocês conhecem o Gore", dizia ele, com seu sotaque refinado sino-italiano. "Ele me pediu permissão para enterrar o cão na minha propriedade." Na verdade, o spaniel preto foi enterrado não na casa de Harold e sim no bosque atrás da casa do bom Vernon Bartlett, perto de Lucca.
Os Newman nos deram de presente nosso terceiro cachorro em 1970. Rat viveu 13 anos. Era um terrier australiano ligeiramente manco, muito inteligente. Estava no auge da forma nos cinco invernos que passamos em Klosters, na Suíça. Ele encantava Greta Garbo, nossa vizinha, e todas as manhãs vinha a meu apartamento para passear comigo e Rat (que ela apelidara de Ratzski, porque "Rat é um nome muito brutal").
Aos 65 anos de idade, Garbo ainda era muito bonita -quer dizer, ainda parecia Greta Garbo. Tinha duas vozes. Uma ela usava quando falava sueco ou alemão, uma voz um pouco aguda, com uma curiosa interjeição dissilábica que usava para dar ênfase: "Aie-ii!". A outra era sua voz grave, "masculina", a que usava nos filmes. Sempre referia-se a si própria como "ele". Gostava de usar minhas roupas. Creio que sempre se via como um rapaz acompanhado de outro rapaz. Estava sempre de olho nas moças, e uma vez, numa caminhada à margem do rio Silvretta, pediu à namorada de Irwin Shaw que lhe mostrasse os seios, no que foi atendida. Garbo elogiou-os, mas a coisa ficou nisso. Os seios de Garbo eram muito caídos. "Nunca usei sutiã. Fui a primeira feminista."
Numa manhã de inverno, fui com Garbo ao jornaleiro da estação ferroviária, onde ela comprava todas as revistas de cinema. Debra Paget e Fabian eram nomes bem conhecidos para ela. Mas nesta ocasião quem estava na capa não era Debra nem Fabian, e sim ela. Cecil Beaton havia escrito a respeito do "caso" que tivera com Garbo. Com uma expressão gélida, comprou todas as revistas e, sem dizer palavra, voltou para casa mais que depressa; fiquei só com Ratzski, lendo a versão italiana do caso que, segundo ela me garantiu mais tarde, jamais ocorrera. "Depois as pessoas me chamam de paranóica", comentou ela, franzindo a testa. Beaton, por outro lado, contou um episódio que parece autêntico. Ele se queixava de que, com a idade, sua genitália estava cada vez menor. Garbo teria respondido, com tristeza: "Quisera eu poder dizer o mesmo".
Garbo era romântica, mas não sentimental. Um dia disse-me que acabara de receber uma mensagem de Estocolmo. O rei estava à morte. No tempo em que era príncipe herdeiro, ele viera almoçar no refeitório da MGM, e Garbo, na condição de rainha sueca do cinema, sentou-se a seu lado. "Me obrigaram a usar um chapéu que parecia um prato e que, a toda hora, escorregava da minha cabeça. Foi a única vez que o vi. Agora estão dizendo que ele sempre foi apaixonado por mim e querem saber se eu posso ir visitá-lo antes que ele morra."
Um típico diálogo da MGM, e dos melhores. Era também a quintessência de Greta Garbo.
"Você tem que ir."
"É tão longe, e para quê, afinal? Ele vai morrer de qualquer jeito."
Naquela noite, levei-lhe caviar e vodca. Irwin Shaw juntou-se a nós e perguntou se podia trazer Martha Gellhorn, uma jornalista que eu admirava. Gellhorn falou sem parar durante horas, e Garbo foi ficando cada vez mais reservada. De repente, Gellhorn foi embora. "Como ela me odeia!", disse Garbo, já com o blazer de Howard -o qual, aliás, ela esqueceu de devolver. Eu e Irwin lhe garantimos que Gellhorn não a odiava, mas não conseguimos convencê-la. No dia seguinte, na rua, Gellhorn veio falar comigo. "Quero pedir desculpas pelo que aconteceu ontem à noite. Eu não conseguia parar de falar. Também, o que se há de fazer quando finalmente se é apresentado a Helena de Tróia?"
Contei isto a Garbo, que me recompensou com uma de suas mais belas expressões, a cabeça jogada para trás, a longa curva de seu pescoço de cisne ainda bonita, os olhos cinza-gelo semicerrados, os lábios virados para baixo, com batom de um tom luminoso e claro de rosa que "Perc Westmore inventou só para mim". Garbo estava satisfeita. "Muito simpático da parte dela. Mas, você sabe, eu nunca fiz o papel de Helena de Tróia."
Durante cinco anos, sempre a víamos no inverno, quando ela vinha a Klosters para ficar com Salka Viertel, a pessoa de quem era mais próxima. Então Salka morreu. Tentei convencer Garbo a ir a Ravello, mas ela temia os paparazzi. Disse a ela que havia uma maneira de livrar-se deles para todo o sempre: "Dê uma entrevista coletiva. Todo mundo vai comparecer. De todos os países. Então anuncie que você vai produzir uma série de televisão, e que vai fazer o papel principal nela. Que é sobre uma empregada sueca que mantém unida uma família americana. Então, um ano depois, convoque outra entrevista coletiva. Desta vez vão vir menos jornalistas. Depois dê a terceira... e nunca mais ninguém vai incomodá-la."
"Não achei graça nenhuma", disse a rainha Cristina.
Porém fui eu que achei graça, quando a ouvi contando como fora sua visita aos Kennedy na Casa Branca. Quando ainda era primeira-dama há pouco tempo, Jackie me dissera: "Uma das poucas coisas boas de morar aqui é que a gente pode conhecer todo mundo que a gente sempre quis conhecer". Assim, como não podia deixar de ser, Garbo foi convidada para jantar. "O presidente me levou a seu quarto. Muito romântico. Então me deu um dente de baleia, e voltamos para junto de Jackie, que disse: 'A mim ele nunca deu um dente de baleia' ".

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