São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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O trabalho silencioso da morte

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Nesta Calçada" não é o primeiro livro que o poeta alagoano Sidney Wanderley publica, mas representa sua estréia no circuito das editoras do Centro-Sul. "É o registro", diz ele na apresentação, "do que julga menos perecível e indigesto em 18 anos de atividade poética".
É comum que o crítico, ao ler um livro de estréia em poesia, sinta a tentação de "reescrever", "corrigir" mentalmente o texto que tem diante dos olhos. Seja porque o autor ainda revele hesitações, seja porque é o leitor quem ainda não se adaptou ao estilo, ao tom, às soluções que o poeta novo está a trazer.
O próprio Wanderley, na pág. 72 do livro, adverte-nos contra essa tentação. Fala de um poema que, "no branco abismo da página/ jaz/ cravejado por palavras e sugestões". Penso naquele tipo de leitor a quem se apresentam os originais de um livro, e que anota cada página, risca, adiciona outras palavras, como se quisesse matar o texto já escrito para substituí-lo por aquele, ideal, perfeito, que tem dentro de sua cabeça.
Mas é possível outra interpretação. O poema que "jaz" na página seria, na verdade, um poema silencioso, o poema além das palavras e das sugestões que evoca no leitor, o poema que está além daquilo que o poeta escreveu, das pedrarias e adereços das palavras.
Não pude evitar, em alguns versos do livro, a tentação a que me referi. Eu teria a objetar ao autor, por exemplo, seu gosto pelas palavras compostas -"remotinsondável", "outrinova", "poemínimos"- ou por aproximações sonoras às vezes forçadas -"marmóreas masmorras-, que, a meu ver, "cravejaram" demais certos poemas.
No plano dos pormenores, da leitura pontual, há entretanto achados que compensam em muito as experimentações desse gênero. São várias as imagens de apelo forte, preciso: a de um "pássaro de ferro planando, que é uma ponte ("Riverrun"); a de um céu à noite que é árvore carregada de frutos (pág. 74), a de uma harmonia cósmica que se reduz "a um monte de coisas atiradas" (pág. 39), ou a de um pavão, que passa com "mil olhos", mas não nos vê (pág. 75).
O momento da exaltação visual, da cor, da metáfora, não esgota a procura poética do autor. É como se o deslumbramento experimentado pelo poeta, e que tantas vezes nos é transmitido com felicidade, fosse passageiro ("alheio a tudo, um rio há/ que passa e, porque alheio,/ a tudo deixar passar", pág. 26). Para além do visto e do sentido, há uma constante aspiração ao silêncio, a um mundo quieto, a um "céu despovoado de estrelas, murmúrios e palpitações" (pág. 80). Morte das coisas, morte do poeta, morte até do poema, como vimos.
A questão da morte e do silêncio aparece de forma explícita em muitos trechos, como no belo "Epílogo". Mais interessante, contudo, do que as várias indagações do poeta a respeito da inutilidade de escrever é o recurso empregado por Wanderley em poemas como "1965, Novembro" (sobre Zumbi) e em "Kitsch": aqui, a imagem de silêncio, rigidez, alheamento, aparece apenas nos últimos versos, fazendo contraste severo, objetivo, com o tumulto e o prosaísmo da cena descrita.
Ascese, suicídio, impulso de morte? Desconfio que não exatamente. O desejo de silêncio, que passa por tantos poemas, parece também resultar de um excesso de desejo, de uma forte sensualidade a que as circunstâncias da vida, e a própria timidez do autor, vêm contrariar. Ao "sonoro não" da mulher amada (pág. 88), o poeta responde com a vontade de criar um mundo "onde o silêncio, menos que uma palavra,/ seja a única atitude imaginada". (pág. 20). Silêncio da morte ou silêncio da acolhida?
Entre mulheres bonitas, o poeta, como "desengonçada jibóia", pede que lhe dêem "a conformação e a calma que possuem as tardes" (pág. 86), mas é tomado de "seco suor". Timidez drummondiana, mais do que ascese cabralina, é o que organiza, entre os pólos do desejo e da morte, o livro de Sidney Wanderley. O penúltimo poema de "Nesta Calçada", ao mesmo tempo simples e sofisticado, é também aquele em que esse conflito se resolve e em que as restrições do crítico naufragam, num mar de poesia. Mas não digo como.

A OBRA
Nesta Calçada, de Sidney Wanderley. 94 págs. Editora Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, São Paulo, CEP 01426-001, tel. 011/ 852-8284). R$ 15,00

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