São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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A inviável harmonia da vida

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Nada mal para um autor ter o livro de estréia prefaciado por João Gilberto Noll. O aval de um escritor de peso, embora não signifique por si só garantia de excelência, torna a leitura da obra em questão quase obrigatória para quem se interessa pela atual produção literária no Brasil.
Em "Contos de Homem", Alexandre Brandão, 34, mineiro radicado no Rio, conseguiu a façanha -e a obra, para crédito do prefaciador e apesar da horripilante capa, não decepciona.
O livro é dividido em três partes. A primeira, "Duas Senhas Básicas", traz dez contos erguidos sobre uma estrutura, digamos, tradicional, em sua forma. O que neles mais toca o leitor -e toca forte- é seu aspecto onírico, meio gosmento, radicalmente amargo e um tanto sanguinolento, fazendo lembrar -não por acaso- "A Fúria do Corpo", primeiro romance de Noll.
Em "O Corpo Não Tem Memória", por exemplo, um homem se vê castrado e nos leva a mergulhar numa existência de "terceiro sexo", complicada, inaceitável até, mas mais próxima do que significaria um ser humano "ideal".
Leia o seguinte trecho de "Encontro na Madrugada sem Lua", expressão do mesmo clima: "Agora sou eu. Beijo sua testa gelada. Podendo fazer mais, faço. Ponho o coração na boca e o mordo. O gosto é amargo, quase intragável. Para o que quero, a fome é maior. Engulo os braços, pêlos, olhos. Os nervos entram em meus dentes, sangrando a gengiva."
Não há meio termo: ou se gosta ou se abandona o livro de cara -o que não deixa de ser meritório para um autor que se apresenta como alguém cuja intenção é não fazer concessões.
Mas terá valido a pena ir adiante, ao menos para ler "Missa do Galo" (nova reelaboração do original machadiano), em que se afirma: "Mas antes da larva e casulo, a primeira quinta-feira, o café da manhã com mamãe. Acompanhou-me um vulto branco; longe de ser fantasma ou culpa, era o que não digo. Não por pecaminoso ou ridículo, mas para não perdê-lo".
A segunda parte, "Escurecimento do Material Poetográfico", talvez seja, como bloco, a melhor do livro de Brandão. São sete textos curtos, com destaque para a curiosa "A Quadrilha do Drummond", mistura do famoso poema do poeta mineiro com o clima da música "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola: diálogos e vozes interiores simultâneas, com inúmeras iras e segundas intenções num trânsito engarrafado.
Por fim, em "Uma Só Confissão de Outras Tantas", a terceira parte, Brandão dá um (pequeno) espaço para o lirismo urbano e juvenil, ainda que, prisioneiro de seu gosto pela felicidade ausente, espete-o sem piedade página por página.
No conjunto do livro, assim, predominam o desencontro, o amor impossível, o ódio como "mola propulsora da vida", a entidade do sexo como incontornável tormento existencial. Tudo isso, numa linguagem que busca constantemente o poético, embora manchado de plasmas e pus e sangue.
No prefácio, João Gilberto Noll afirma: "...como profundo escritor quer muito além, quer por exemplo revolver e reavivar o drama humano com uma espécie de humor irado, quase bélico -este, sim, pertencente ao veneno purificador do ato artístico, esta experiência cheia de barbárie e estranheza e que toca, destemida, a nossa mais íntima e encoberta natureza".
PS: O livro marca a estréia de uma nova editora, a Aldebarã. Que seja bem-vinda!

A OBRA
Contos de Homem, de Alexandre Brandão. 143 págs. Editora Aldebarã (Travessa do Passo, 23, sala 507, Rio de Janeiro, CEP 20010-170, tel. 021/220-6409). R$ 15,00

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