São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Os prodígios da loucura

CHAIM SAMUEL KATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois de 11 anos, sai a segunda edição da tradução das memórias de Daniel Paul Schreber. Filho de família rica, culta e reconhecida, nasceu na Alemanha (Leipzig), em 1842. Para ficarmos apenas com seu pai, lembro que era famoso ortopedista, criou uma doutrina exata para controlar os corpos; obrigação de comer alimentos, de ter que manter posturas adequadas, a fim de manter o princípio de que só em corpo são se desenvolve a mente sã.
Não apenas produziu regras para o pensamento como inventou aparelhos ortopédicos para a correção das posturas, inclusive durante o sono. É claro que educou seus filhos com tal "método Schreber".
Morre de obstrução intestinal, algo perturbado, "sofrendo de manifestações compulsivas com impulsos assassinos" (1).
Nosso Schreber teve muitos sucessos públicos e um enorme sofrimento, psicopatológico. Foi esta última faceta que o tornou conhecido entre nós, na medida que suas "memorabilia" relatam suas perturbações anímicas.
O que escreveu Schreber? "Fui duas vezes doentes dos nervos"; uma quando era juiz-diretor da região de Chemnitz, em 1884, e foi derrotado nas eleições para o Parlamento. Sofreu um grande baque e foi internado, passando seis meses na clínica para doentes nervosos da Universidade de Leipzig, dirigida por Paul Emil Flechsig, que o diagnosticou como hipocondríaco. Ficou ali seis meses e recebeu alta. Curou-se e viveu feliz oito anos, perturbado por não ter podido ter filhos. Em 1889 é presidente do Tribunal de Freiberg; e em outubro de 1893, com apenas 51 anos de idade, é nomeado para o alto cargo de juiz-presidente da Corte de Apelação de Dresden. No intervalo teve vários sonhos nos quais lhe apareciam idéias de que tinha recaídas da doença. Uma manhã, no devaneio, passa-lhe "a representação de que devia ser agradável ser mulher durante o coito".
No final de outubro de 1893, tem uma recaída, sendo reinternado na clínica de Flechsig (sanatório da Universidade de Leipzig), onde fica seis meses. Em junho de 1894 ficará internado no sanatório de Sonnenstein, de 1902. Posto sob cuidado desde 1894, começa a lutar contra esta decisão jurídica; é isto que o fará escrever suas memórias, nas quais relata suas experiências psíquicas, como prova de que elas não o impediriam de exercer seu cargo.
Na primeira fase, tem alucinações auditivas e visuais e queixas de hipocondria. Acredita-se morto e putrefato, empesteado, com o corpo submetido a manipulações repugnantes. Ficava inteiramente imóvel, tão grandes eram seus sofrimentos. Os delírios vão se tornando místicos e religiosos. Via fenômenos milagrosos, acreditando viver em outro mundo. Qualificava Flechsig de "Seelenmõrder", assassino de almas, e o chamava de "pequeno Flechsig". Diagnóstico: demência alucinatória.
Em 1900, o dr. Weber, de Sonnestein, diz que ele está lúcido, pois no seu convívio com os médicos conversa sobre temas "sociais" e demonstra grandes conhecimentos sobre inúmeros assuntos. Contudo Weber escreveu que Schreber tem um sistema delirante completo, com idéias fixas que não poderiam se corrigir com argumentos razoáveis.
Em 7 de fevereiro, com o mesmo dr. Weber sendo chamado enquanto perito, anula-se sua incapacitação e, em 1903, aparecem suas "Memórias", censuradas.
Na sentença judicial, diz-se que se considerava possível salvador do mundo, mas só depois de conseguir se transformar em mulher; e isto se devia à "ordem universal". Era alvo de milagres divinos e o homem mais especial existente. Tinha modificações no corpo e nos órgãos, sem estômago, intestinos, quase sem pulmões, sem bexiga, com as costelas soltas. Relata seu corpo esvaziado, sem órgãos, e não despedaçado. Os raios restaurariam o que havia sido destruído, e precisava de séculos para chegar à perfeição.
Tinha "nervos femininos", que, por meio da fecundação imediata de Deus, gerariam novos homens. Falavam-lhe, com linguagem humana, não apenas o sol, mas as árvores e os pássaros, "restos encantados de antigas almas humanas".
Bem, Freud, no seu estudo baseado nas "Memórias", entenderá Schreber de duas maneiras distintas: a primeira, no regime psicopatológico, é que como paranóico ele não pôde atingir adequadamente o complexo de Édipo e que, fixado numa fase homossexual de seu desenvolvimento psíquico, procura "se fazer" por meio da colagem de pedaços desconexos que não alcançam uma estrutura. As doenças anímicas seriam transformações ("Umbildungen") de uma estrutura psíquica unitária e única, e, por isto, Schreber estaria sempre fadado ao fracasso de se reconstituir "normalmente".
A segunda, quando ele se coloca desde a perspectiva do inconsciente, Freud se pergunta se não haveria similitudes entre o delírio paranóico e a teoria psicanalítica; não apenas porque a teoria seria delirante, mas porque o delírio seria mais verdadeiro do que ele imaginava, desde uma estrutura psíquica única (2). Nesta segunda perspectiva, o inconsciente se anuncia distinto dos saberes tradicionais, como gaia ciência. Sem este novo estatuto, nós, psicanalistas, continuamos a ignorar os sofrimentos e as possibilidades de cura dos psicóticos.
Outra interpretação importante é de Elias Canetti, no seu "Massa e Poder".
A tradução da querida Marilene Carone é primorosa, seu prefácio e as notas, importantes. Livros de psicanálise devem-se traduzir da língua original; e espera-se que os tradutores saibam rigorosamente o que elaboram. Ler esta tradução nos dá, além de conhecimentos importantes, grande deleite.

NOTAS:
1. cf. Niederland, "O Caso Schreber, ed. Campus, 1981
2. Gesammelte Werke, vol. 8, pág. 315

A OBRA
Memórias de um Doente de Nervos, de Daniel Paul Schreber. Tradução e introdução de Marilene Carone. 371 págs. Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, São Paulo, CEP 01212-010, tel. 011/223-6522). R$ 25,00

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