São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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A perspicácia de um espírito

MARILENE CARONE

O que faz com que uma autobiografia bem escrita, mas sem prestígio literário, resista ao desgaste do tempo, conservando interesse e atualidade? Certamente não bastaram as pretensões do autor, a cuja celebridade sempre se associaram as noções de paranóia e megalomania. Na verdade, a ambição de Schreber só começou a se tornar realidade a partir do momento em que Freud, em 1911, transformou seu livro de memórias num documento científico de leitura indispensável para o estudioso da psicose na perspectiva psicanalítica. De fato, por mais extensa que seja hoje a bibliografia sobre Schreber, seu nome permanece indissoluvelmente ligado a Freud: nós o conhecemos a partir do lugar que ele ocupa na galeria de seus pacientes famosos, ao lado de Dora, do Pequeno Hans, do Homem dos Ratos e do Homem dos Lobos. (...) podemos ver nessa circunstância uma oportunidade privilegiada: a de poder refletir sobre Schreber exatamente a partir dos mesmos dados que o criador da psicanálise. O privilégio de poder se ombrear com Freud no exame dos dados, talvez mais do que o próprio fascínio exercido pela psicanálise da psicose, tem estimulado os psicanalistas pós-freudianos e estudiosos de outras áreas a se ocuparem do caso Schreber. Nenhum outro paciente de Freud inspirou tal quantidade de trabalhos ou foi objeto de tantas especulações. Como observa O. Mannoni, por mais que o livro de Schreber aponte para o imaginário, nunca foi considerado obra de imaginação: ele transforma cada leitor seu num psiquiatra. Talvez não fosse exatamente essa a intenção de Schreber, pois ele negava com veemência a condição de doente mental. Sabia perfeitamente que sua vida carregava a "marca da loucura" e por isso mesmo temia que o leitor se deixasse enganar pelas aparências, tomando o relato de suas experiências como "fantasmagorias ocas de uma cabeça confusa". Doente dos nervos, sim, mas não uma pessoa que sofre de uma turvação da razão. "Minha mente é tão clara quanto a de qualquer outra pessoa". Esperava que o leitor confiasse na honestidade de sua palavra e na seriedade das suas intenções: "(...) pretendo que me sejam reconhecidas duas capacidades: por um lado, um inquebrantável amor à verdade, e, por outro lado, um dom de observação fora do comum. O fato é que o livro de Schreber continua a ser a prova de fogo da teoria psicanalítica e um dos melhores textos de iniciação à fenomenologia da psicose, segundo Lacan, que atribui essa referência histórica a pelo menos dois fatores: por um lado, a pobreza da perspectiva clássica da psiquiatria e, por outro, a perspicácia psicológica e estrutural do próprio Schreber, que com razão se vangloriava de ter chegado a "intuições sobre as sensações e os processos de pensamento humano que muitos psicólogos poderiam invejar".

Extraído da "Introdução" das "Memórias de um Doente dos Nervos", de Daniel Paul Schreber

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