São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Deus conspira contra o homem'

DANIEL PAUL SCHREBER

Foi preparada uma conspiração dirigida contra mim (em março ou abril de 1894), que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o suposto caráter incurável da minha doença nervosa, confiar-me a um homem de tal modo que minha alma lhe fosse entregue, ao passo que meu corpo (...) devia ser transformado em um corpo feminino e, como tal, entregue ao homem em questão para fins de abusos sexuais, devendo finalmente ser "deixado largado e, portanto, abandonado à putrefação. (...) não tenho a menor dúvida de que essa conspiração realmente existiu, acrescentando sempre que não ouso afirmar uma participação do prof. Flechsig na sua qualidade de homem. Naturalmente não se dizia uma palavra sequer a respeito disso quando o prof. Flechsig se apresentava a mim a sua qualidade de homem. Mas, na conexão nervosa que ele ao mesmo tempo mantinha, na qualidade de alma, isto é, na língua dos nervos, (...) expressava-se completamente sem disfarce essa intenção. Acrescente-se a isso o fato de que também o modo exterior de tratamento me parecia corresponder à intenção anunciada na língua dos nervos; mantinham-me semanas inteiras na cama, privando-me das minhas roupas para -como acreditava- tornar mais acessíveis para mim as sensações voluptuosas, que podiam ser estimuladas pelos nervos femininos que já penetravam cada vez mais em meu corpo; empregaram também meios (medicamentos) que, de acordo com a minha convicção, visavam o mesmo objetivo, razão pela qual eu me recusava a tomá-los, ou, quando me eram impingidos à força pelos enfermeiros, eu os cuspia de volta. Pode-se imaginar o quanto toda a minha honra, o meu amor-próprio viril, bem como toda a minha personalidade moral se rebelava contra esse plano vergonhoso, quando tive a certeza de ter tomado conhecimento dele, tanto mais que eu estava ao mesmo tempo totalmente tomado por representações sagradas sobre Deus e a Ordem do Mundo e excitado pelas primeiras revelações sobre coisas divinas que tinha tido através da relação com outras almas.
Totalmente cortado do mundo externo, sem qualquer relação com minha família, só nas mãos de rudes enfermeiros, com os quais brigar de tempos em tempos me fora tornado, por assim dizer, um dever pelas vozes interiores, como prova da minha coragem viril, não podia portanto surgir em mim nenhum outro pensamento que não o de que qualquer outro tipo de morte, por mais terrível que fosse, seria preferível a um fim tão ignominioso. (...) Que o próprio Deus fosse cúmplice, senão investigador, do plano que visava o assassinato da minha alma e o abandono do meu corpo como prostituta feminina, é um pensamento que só muito mais tarde se impôs a mim e que em parte, seja-me permitido afirmar, só me veio claramente à consciência durante a redação do presente ensaio.

Extraído de "Memórias de um Doente de Nervos", págs. 67-69

Texto Anterior: A perspicácia de um espírito
Próximo Texto: Entre o direito e o preconceito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.