São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

GORE VIDAL

Sempre me interessei em saber onde o escritor está fisicamente localizado no momento em que ele escreve suas memórias. Quando se trata de uma obra de imaginação, isto é menos importante, já que a verdadeira geografia de um romance é mesmo a mente. Porém uma obra de memórias pode ser inspirada por mil associações diversas, muitas vezes pelos objetos presentes em um recinto. No caso presente, o recinto fica em Ravello, uma cidadezinha no litoral da Itália, ao sul de Nápoles. A sala é branca; o teto é em arco; à minha esquerda há uma janela que dá para o golfo de Salerno, em direção a Paestum. Do outro lado da sala fica uma lareira grande, de tufo cinzento, com ladrilhos verdes, amarelos e azuis, delicadamente trabalhados. À direita da lareira, num console, uma foto de Tennessee Williams e Maria St. Just. Ela morreu alguns meses atrás, e sua filha está hospedada aqui. Tennessee não olha para Maria, que olha para ele. Esta fotografia foi tirada há muitos anos, em Key West.
Do outro lado da lareira, uma foto em que apareço ao lado do presidente que mais mal nos fez, Harry S. Truman. Ele veio a Fishkill para defender a minha candidatura à Câmara dos Representantes. Estamos em 1960. Eu olho para ele com uma expressão servil no rosto, enquanto a fina flor de Tammany Hall (1) permanece olhando para a frente, imperturbável. Depois vem uma foto em que apareço recebendo John Kennedy no condado de Dutchess. Ele acaba de ser escolhido como candidato democrata à Presidência. Nós dois ainda somos bem jovens, para dizer o óbvio.
Junto à porta há dois documentos emoldurados: meus dois títulos de cidadão honorário, um de Ravello e o outro de Los Angeles, minhas (?) duas outras cidades. Há uma semana, nos jardins da Villa Cimbrone, perto de nossa casa, recebi uma homenagem pelos filmes cujo roteiro escrevi. Como é típico acontecer nestas situações, a homenagem começou com "Bob Roberts", um filme em que apenas participei como ator. Como o roteirista, protagonista e diretor, Tim Robbins, estava hospedado em nossa casa, juntamente com sua mulher Susan Sarandon, a coisa acabou virando uma homenagem a Tim, o que não foi problema nenhum, e não impediu o parlamentar responsável pela cultura, Vittorio Sgarbi, um historiador de arte que é uma figura folclórica e "personalidade" de televisão, de dar prosseguimento a sua velha discussão pública comigo a respeito de quem é o verdadeiro autor de um filme. Trata-se de um assunto do qual todo mundo entende, menos aqueles que, como eu, realmente já fizeram um filme.
Um livro de memórias diz respeito ao que lembramos de nossa própria vida; já uma autobiografia é uma obra de história, que exige pesquisas, datas, verificação e confirmação de fatos. Optei pelo caminho das memórias, com base no argumento de que mesmo uma memória ociosa consegue lembrar-se direito das coisas mais importantes.

NOTA
1. Termo que designava a comissão executiva do Partido Democrata na cidade de Nova York, famosa por sua corrupção. (N. do T.)

Continua à pág. 5-5

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