São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

Medo, silêncio e 'café society' nos EUA de Truman

GORE VIDAL

Na primavera de 1950, eu estava com 24 anos e tinha acabado de publicar "The Season of Comfort" (inédito no Brasil). Jamais reeditei este livro; foi o texto mais próximo de um romance autobiográfico que escrevi antes de "Washington D.C." (ed. Rocco). Eu estava pronto para me fixar em algum lugar que fosse próximo de Nova York, mas não exatamente na cidade, porque os russos estavam chegando e a qualquer momento a "bomba" ia cair no meio da noite.
A grande máquina de guerra perpétua dos Estados Unidos estava em pleno funcionamento e, embora estivéssemos oficialmente em tempo de paz (logo teria início uma guerra de verdade na Coréia), Truman havia instituído um sistema "permanente" de recrutamento militar, coisa que jamais existira em nosso país. O imposto de renda tinha até uma alíquota de 90% para poder sustentar o cartel de defesa que mantinha o arsenal da democracia cheio de armas, a fim de que pudéssemos dar auxílio a todos os pequenos países amantes da paz em todo o mundo, mesmo que eles não quisessem ser ajudados.
Enquanto isso, as acusações de comunismo estavam começando a destruir as carreiras não apenas dos poucos americanos que haviam de fato sido comunistas como também as de muitos outros que defendiam posições heterodoxas em matéria de política, sexualidade, raça ou religião. Truman criou a exigência do juramento de lealdade para funcionários públicos do governo federal; isto, por sua vez, permitiu que florescessem em nosso meio dedos-duros profissionais, como o senador Joseph McCarthy. O que era lealdade? O que era deslealdade? O que era ser americano ou antiamericano?
Allen Ginsberg lembra-se destes anos como uma época de liberação. Eu, não. Só me lembro de conformismo, medo e silêncio. Os beats achavam que haviam feito um gesto notável pulando fora do esquema e viajando para Marrocos, para não falar em outras "viagens", mas na verdade eles nunca estiveram dentro de nada de que pudessem pular fora. Eram pessoas marginalizadas, a quem ninguém teria dado importância, não fosse o gênio de Allen para a publicidade. Porém, tendo atingido um certo nível de fama televisiva, eles se deixaram adotar por lúmpen-imperialistas da extrema-direita como William Buckley Jr.
Naquela época, nenhum escritor da minha geração era verdadeiramente politizado, com exceção de Norman Mailer, que tivera a decência de defender Henry Wallace, o único político na eleição de 1948 que chamou a atenção do público para a grande vigarice da política de segurança nacional. Como era de se esperar, Wallace foi taxado de comunista e expelido do sistema. Dois anos depois, conheci Mailer na casa do romancista Vance Bourjaily. Vance e sua mulher haviam criado uma espécie de salão literário em Nova York, que costumava reunir escritores-escritores em vez de escritores-professores. As bichas eram excluídas (a menos que devidamente enrustidas), enquanto os judeus tendiam a gravitar em torno da "Partisan Review" (1).
Tirando Tennessee Williams, Paul Bowles e Louis Auchincloss, nunca cheguei a conhecer bem a maioria de meus contemporâneos. Eu tinha a impressão, sem dúvida incorreta, de que muitos deles apenas brincavam de ser escritores, cada um tomando como modelo um dos três protótipos da geração anterior -Faulkner, Hemingway, Fitzgerald.
Uma vez fui convidado para um almoço por um romancista sulista muito jovem e muito ambicioso, o qual queria brilhar naqueles círculos sociais, que, de modo geral, não se abrem para escritores sulistas muito jovens e ambiciosos. Tal como Truman Capote, ele queria ser aceito pelo que era então denominado "café soçaite" e, também como Capote, havia confundido esta esfera com o grand monde, quase invisível para quem não pertence a ele, que Proust conseguira resgatar -por meio de esforços tão obsessivos- do Tempo Perdido.
"Você pode vir almoçar com a Alice Astor Bouverie?", perguntou-me ele, enfatizando o nome de solteira. Quando hesitei, não sabendo de quem se tratava, acrescentou: "Truman vai estar lá". Claramente ele imaginava que a presença de Truman, como árbitro, haveria de me convencer de que a escada que ele me oferecia era mesmo segura. Porém eu já tinha observado vários Astor em Newport, Rhode Island.
Os Auchincloss -a família de meu padrasto, Hugh- desprezavam os Astor, por julgá-los dados à ostentação, embora os Auchincloss fossem muito mais nouveaux que os Astor e -ainda que Hugh tivesse trazido à família uma saudável contribuição de dinheiro da Standard Oil, herdado de sua mãe- muito menos riches que John Jacob Astor, que havia afundado com o "Titanic", deixando três filhos, Vincent, Alice e John Jacob 5º, este nascido postumamente, filho de uma outra esposa; seus irmãos postiços haviam sido meus colegas de escola.
Já não me lembro onde foi o tal almoço, nem quem mais estava presente. Alice era um ano mais velha que minha mãe. Era esguia, morena, pálida; vista de certos ângulos, era bonita. Sua mãe, Ava, depois que se divorciou de Astor, casou-se com lorde Ribblesdale, notório mulherengo (de quem existe um belo retrato de autoria de Sargent); foram morar na Inglaterra, onde Alice passou a infância. Alice veio a ter quatro maridos e quatro filhos. Por precisar de espaço -devido aos quatro filhos, bem entendido-, construiu um solar de pedra cinzenta em Ferncliff, a propriedade dos Astor à margem do rio Hudson.
A casa ficava bem recuada da estrada marginal, um caminho sinuoso que atravessa as propriedades arborizadas de diversos Delano, Vanderbilt, Aldrich e Roosevelt, para não mencionar a "Casa da Alegria", de Edith Wharton, projetada por Ogden Mills. Mas, em 1950, alegria já se tornara artigo escasso naquelas casas. Umas famílias estavam extintas, outras haviam se dividido; e a economia do pós-guerra havia eliminado o principal sustentáculo de qualquer aristocracia hereditária -a classe dos criados.

NOTA
1. "Partisan Review": revista cultural de esquerda, fundada em 1934, mais tarde de tendência liberal

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