São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

Do centro vital da cultura até a Broadway

GORE VIDAL

Um biógrafo de escritores afirmou recentemente que o período da história da literatura americana em que ele mais tinha vontade de ter vivido era a década de 50, em Barrytown e na região circunjacente à margem do Hudson, onde fica Bard College. Mary McCarthy lecionou algum tempo em Bard, onde compôs aquele buquê de flores venenosas, o romance "The Groves of Academe" (1), que inspiraria depois uma obra igualmente espirituosa, "Pictures from an Institution" (2), em que Randall Jarrell satiriza Mary satirizando Bard. Também o jornalista político Richard Rovere morava nas redondezas, em Rhinebeck. Mas para mim o mais importante era a presença de F.W. Dupee, com sua mulher e seus dois filhos, num belo solar antigo chamado Wildercliff.
Saul Bellow e Ralph Ellison dividiam uma casa não muito longe dali. Relembro agora que até mesmo na conversa mais inócua o simpático Ralph dava um jeito de tocar no assunto da "situação dos negros". Fred Dupee uma vez foi me visitar. "Estou vindo da casa do Saul e do Ralph." Sempre que pronunciava estes dois nomes juntos, Fred tinha o cuidado de grifá-los, como se se tratasse de um tipo de casal que só se podia mencionar em sussurros naqueles tempos furtivos. "O Ralph estava plantando flores no jardim. Cometi o erro de lhe perguntar que flores eram aquelas. Ele me dirigiu um olhar devastador e disse: 'Margaridas africanas'."
Talvez o único caso de uma universidade americana atuar de fato como um centro cultural tenha sido a Columbia University no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Richard Chase, F.W. Dupee, Lionel Trilling, Andrew Chiappe, Mark Van Doren, Jacques Barzun e até mesmo Gilbert Highet tornavam o ambiente interessante não apenas para estudantes como Kerouac e Ginsberg, mas também para qualquer um que quisesse participar do que Barzun chamava, talvez de modo um pouco pretensioso, de "a longa conversação", uma das melhores definições de civilização (sob seu aspecto intelectual) a que se pode chegar. Imagino que Harvard, no tempo de William James, Peirce e Santayana, talvez tenha sido igualmente interessante.
Assim foi que, por puro acaso -o acaso em questão sendo minha amizade com Alice-, que dei por mim no centro geográfico de um dos grupos mais vitais de que nossa cultura dispunha. Lembro-me que Fred Dupee surgiu em minha vida no ano em que Alice morreu. Era um homem encantador, cujas tiradas espirituosas geralmente não eram percebidas pela maioria da população local, inclusive pelos escritores-professores. Tinha estatura mediana, olhos azuis como os de Kerouac, cabelos grisalhos abundantes, partidos no meio, e os modos mais elegantes que já se viram num homem que dera o salto quântico de Joliet, Illinois (onde fica a famosa penitenciária) à Yale, de Rudy Valee, depois ao partido comunista, e por fim aos píncaros da Columbia.
Apesar de sua passagem pelo partido comunista, Fred era apolítico. Não levava mais a sério a política de sua época; além disso, pouco se interessava pela política de outrora -ou seja, pela história. O que o fascinava era a estética. Era capaz de discorrer sobre a maneira correta de se vestir para um universitário de Yale nos anos 30 com a mesma desenvoltura com que fazia uma análise de uma passagem de Milton, cujo busto ornava a sala de visitas de Wildercliff. Ouvir Fred analisar um texto era um espetáculo e tanto para todo aquele que via a crítica como uma arte literária das mais elevadas e não apenas como um processo mecânico de elaborar teorias.
Foi em meu período mais intensivo de leitura que conheci Fred, o qual era também autodidata, à medida que não tinha doutorado e jamais se integrou realmente ao sindicato de professores de letras, que tendia com insistência a estreitar -ainda que não aprofundar- a mente por meio da especialização. Nunca o vi lecionar, mas dizem que os alunos vinham em massa ouvi-lo. Seu campo de abrangência ia de Shakespeare a James, autor pelo qual tinha uma afinidade profunda, algo exacerbada pela presença, ali mesmo, à margem do Hudson -porém, para ele, tão distantes-, das grandes famílias que aparecem nos romances de James, como nos de Wharton.
A obsessão que Fred sentia por estes personagens era mais do que contrabalançada pelo ódio que Saul Bellow sentia por elas -em particular por seu senhorio, Chanler Chapman, filho de John Jay Chapman. Chanler adotava uma postura muito senhorial em relação aos escritores-professores que o cercavam -especialmente para com Saul, que morava numa das casas de aluguel construídas na propriedade dos Chapman. As brigas entre o amo imperturbável e o servo rebelde deliciavam a todos nós; anos depois, proporcionaram igual prazer às pessoas capazes de ler, quando Saul transformou Chanler em sua maior criação, "Henderson and the Rain King". Saul também fazia vinho de frutas silvestres.
Nunca consegui distinguir as esposas de Saul. Ele dava-me a impressão de estar sempre casado com (ou acompanhado por) uma nova variação de um modelo (para ele) ideal de mulher, que incluía uma tendência a ranzinzar. "É claro que você tinha que esquecer de comprar o iogurte quando eu pedi para você não esquecer..."
Saul mantinha-se muito próximo à sua experiência de vida em seus escritos, algo que deveria ter limitado sua obra e no entanto conseguiu transcender uma boa quantidade de iogurte esquecido -sem jamais esquecer que o iogurte é essencial para qualquer história, uma dessas "fímbrias humanas" que, como Edith Wharton comentou com James, "necessariamente arrastamos ao longo de nossas vidas" e cuja ausência ela lamentou em "The Golden Bowl". James, abalado, insistiu que tais fímbrias estavam presentes em seu romance, sim.
Fred e sua mulher trouxeram Lionel e Diana Trilling a Edgewater (onde morava Vidal). Lionel era um homem pálido, com olheiras negras que o faziam parecer um guaxinim notívago; Diana era orgulhosa e dogmática. Tomamos uns drinques no que chamávamos de "sala verde", no lado da casa que dava para o sul. Fui tão educado quanto se espera de um anfitrião. Lionel pareceu ficar realmente satisfeito de ver que eu admirava seu romance político "The Middle of the Journey". Por outro lado, uma pessoa capaz de escrever um livro sobre E.M. Forster e não ter consciência de sua veadagem intensa, quase religiosa, não pode ser grandes coisas como crítico.
A coluna literária de Diana que saía em "The Nation" (3) parecia ter-lhe subido à cabeça, como suas recém-publicadas memórias revelam. Nelas ela confessa que passou a ser admirada pelas pessoas certas... Era convidada por editores para almoçar. Mais tarde, Diana viria a tornar-se famosa com a publicação de um texto inadvertidamente hilariante chamado "The Other Night at Columbia", onde relatava uma noite em que, após uma bela apresentação feita por Fred, Allen Ginsberg recitou seus poemas, levando Diana a especular a respeito da diferença entre os beats bárbaros e os representantes da cultura elevada que haviam de fato se realizado, como ela e Lionel. Por muitos anos, sempre que eu telefonava para Fred, eu dizia, com uma voz bem grave e trovejante: "Fred! Aqui é a Diana. Diana Trilling". E Fred sempre respondia, com sua voz mais formal e cortês: "Diana, mas que bondade sua em me ligar. Ainda agora mesmo eu estava relendo sua resenha de 'The Man in the Gray Flannel Suit' (4). Realmente, é um texto que se sustenta até hoje. Falando sério. Parece Matthew Arnold".
Na sala verde, Saul Bellow saudou Lionel alegremente: "E então, continua enrolando os leitores com a mesma conversa fiada de sempre?". Mais tarde Saul romperia com Nova York e se mudaria para Chicago. Embora Chicago seja uma cidade melhor para se morar, jamais entendi sua implicância com o mundo literário nova-iorquino, onde ele era o príncipe. O establishment literário judaico queria um grande escritor. Saul foi o escolhido e mudou-se para outra cidade. Por outro lado, Saul sempre teve tendências universalistas.
Depois que meu romance "Messias" (ed. Rocco) fracassou, em 1954, fui trabalhar na televisão. Resoluto, jurei que em cinco anos ganharia bastante dinheiro para durar o resto da vida. Os cinco anos acabaram virando dez. Da televisão passei para a MGM, como roteirista. De lá fui para a Broadway, onde emplaquei duas peças de sucesso seguidas. De vez em quando eu tinha a impressão de que meus vizinhos escritores-professores andavam com má vontade em relação a mim.
Há coisas que simplesmente não se fazem. Sucesso na Broadway era uma dessas coisas, e Mary McCarthy, num acesso feroz de inveja, o lado negro de sua natureza inteligente e tão luminosa, traiu-se ao publicar um ataque a Tennessee Williams na "Partisan Review sem se dar conta de que o título do artigo revelava muito a respeito de si própria: "A Streetcar Called Success" ("Um Bonde Chamado Sucesso").

NOTAS
1. "The Groves of Academe": romance "à clef" de Mary McCarthy sobre a comunidade intelectual da costa leste dos EUA
2. "Pictures From An Institution": sátira do poeta Randall Jarrel a "The Groves of Academe"
3. "The Nation": semanário de esquerda fundado em 1865 e que ainda hoje circula
4. "The Man In the Gray Flannel Suit": best seller de Sloan Wilson, que resultou no filme "O Homem do Terno Cinzento"

Continua à pág. 5-6

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