São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

Uma possessão negra para 20 milhões de pessoas

GORE VIDAL

Passei o dia de 15 de fevereiro de 1954 no estúdio de televisão da CBS na 10ª avenida de Nova York. Outrora aquele estúdio fora um teatro; agora o interior eviscerado era um emaranhado de cabos, fios, luzes dependuradas, câmaras abrutalhadas instaladas em gruas. Lá no alto, onde antigamente ficara o primeiro balcão, agora estava instalada a cabine de controle.
Através de janelas de vidro laminado, o diretor e sua equipe não apenas viam todo o chão do teatro, dividido em cenários realistas que seriam usados na peça daquela noite, como também acompanhavam, numa fileira de monitores, o que cada uma das três câmaras estava registrando. Um monitor central mostrava o que ia ao ar; a peça ia sendo montada à medida que as imagens de uma câmara eram rapidamente trocadas pelas de outra. Minha primeira peça escrita para a televisão "ao vivo" estava sendo encenada ao mesmo tempo em que era transmitida. Tratava-se, na verdade, de teatro fotografado. O programa, "Studio One, patrocinado pela Westinghouse, apresentava uma peça nova cada segunda-feira.
O dia começava cedo no estúdio, com um ensaio geral técnico. Pela primeira vez os atores viam os cenários e as câmaras viam os atores. Havíamos passado uma semana ensaiando na 2ª avenida, em frente ao Ratner's, um restaurante judaico, num prédio de propriedade de uma organização ucraniana. Como já havia assistido a muitos filmes, eu conhecia bem três membros do elenco. Um era Bramwell Fletcher, já idoso. Em "The Mummy", ele fizera o papel do arqueólogo que é o primeiro a ver a múmia voltar à vida e morre rindo histericamente. O protagonista de "The Mummy" era David Manners, filho do diretor da editora E.P. Dutton, o qual me havia garantido que minha reputação não sobreviviria à publicação de meu terceiro romance, "A Cidade e o Pilar" (ed. Rocco), em 1948.
Em 1954, eu era obrigado a reconhecer que ele tinha razão. Não me restara senão a alternativa de trabalhar na televisão. Mas, tal como o general MacArthur, eu sabia que um dia ia voltar. Claro que ninguém acreditava em mim, porque, depois que um escritor sério se vende... Vejam o Clifford Odets, todos diziam. Eu via. Para mim, ele tinha se encontrado em Hollywood. Mas naquele tempo falava-se muito a sério na prostituição dos talentos, na oposição entre comércio e arte. Na verdade, não havia -como não há ainda- muita arte no mundo literário americano, e até mesmo para os mais prostituídos não era fácil ganhar a vida na televisão; eu, por exemplo, ganhei cerca de US$ 700 por uma peça de uma hora de duração -ainda que, é bem verdade, a peça em questão tivesse levado apenas quatro dias para ser escrita.
O produtor de "Studio One" era Felix Jackson, um refugiado da Alemanha nazista que fora casado com Deanna Durbin, soprano que fora rival de Judy Garland quando menina e que imitava a famosa atriz com uma crueldade maravilhosa, entortando o braço e abrindo-se num sorriso radiante e louco, que combinava perfeitamente com os olhos vesgos e luminosos. Mas Garland também se autoparodiava com igual sarcasmo. Por ocasião de sua volta triunfal, no Palladium, em Londres, movida por um impulso algo sádico, resolveu telefonar para sua rival, agora esquecida.
Depois de muitas dificuldades e pistas falsas, Garland finalmente conseguiu encontrar Durbin, sonolenta e mal-humorada, em sua casa no interior da França. "Hoje me apresentei para a maior platéia de toda a minha vida!" E contou com todas os detalhes sua noite de triunfo. Por fim, ofegante, parou. Houve um longo silêncio. Depois uma voz cheia de piedade indagou: "Você continua fazendo esse trabalho idiota?".
Agora era eu que estava nessa. Havia encontrado uma das mais antigas histórias a respeito de dupla personalidade, passada na Nova Inglaterra na virada do século. Geraldine Fitzgerald era a moça possuída em "Dark Possession" (Negra Possessão), o título um tanto melodramático da peça. Barbara O'Neil, que fora a mãe de Scarlett O'Hara em "...E o Vento Levou", fazia o papel da irmã de Geraldine e Leslie Nielsen era um jovem médico.
Eu costumava reescrever o texto até o dia da transmissão. Isto era trabalhoso para os atores, mas a peça saía melhor. Mais tarde, quando trabalhei no cinema, fiquei atônito ao constatar que o roteirista não tinha o direito de assistir à primeira leitura, nem de jamais voltar a ver seu roteiro. No entanto, é só quando o escritor ouve os atores dizerem as falas por ele escritas que ele pode perceber o que não funciona. Pode também mexer no diálogo de modo a adaptá-lo ao talento de um ator específico, tal como um compositor compõe para um instrumento musical específico.
Passei o dia todo no estúdio. Franklin Schaffner era um diretor razoável; mais tarde ele viria a dirigir meu filme (meu e não dele, como eu disse aos franceses escandalizados em Cannes) "The Best Man" (1). Lembro-me de Barbara O'Neil, a caráter, no cenário que reproduzia uma lúgubre sala de jantar vitoriana, sentada, muito tesa, ao lado de um vaso com uma mimosa amarela: "Se eu não pudesse ficar sentadinha aqui, sentindo o perfume desta mimosa, eu ia começar a gritar". Para atores que trabalhavam na televisão ao vivo, o nervosismo normal de antes do espetáculo era exacerbado pela consciência de que 20 milhões de pessoas estariam assistindo e que, se esquecessem as falas, as quais haviam aprendido em menos de uma semana de ensaios, nunca mais trabalhariam na televisão.
Havia muitas histórias terríveis a respeito de atores que tinham entrado em parafuso diante das câmaras. Uma vez vi uma jovem loura e etérea, numa delicada cena de amor, silenciosamente vomitar em cima de seu amado. Por mais difícil que fosse trabalhar nestas circunstâncias, o fluxo forçado de adrenalina levava a interpretações altamente concentradas, e não admira que nossa geração de atores, escritores e diretores tenha dominado o cinema por 40 anos.
Acabo de assistir em vídeo a uma gravação ao vivo de "Dark Possession". A peça ainda parece curiosamente espontânea, mas pode-se ver, nas cenas em close, que Leslie, que interpreta um personagem ultra-cool, está suando como um pugilista em pleno inverno da Nova Inglaterra, enquanto os lábios de Barbara tremem, talvez por síndrome de abstinência de odor de mimosa. Tudo correu bem até o primeiro anúncio, que também era transmitido ao vivo. Num canto do estúdio submetido a uma iluminação dramática, até mesmo reverente, havia uma capela especialmente construída para uma geladeira Westinghouse, nosso patrocinador.
A suma-sacerdotisa da publicidade da época, Betty Furness, não trabalhava naquela noite, sendo substituída por uma jovem atriz, a qual foi rapidamente enumerando as virtudes da geladeira em questão. "E tudo funciona com a maior facilidade. É só apertar o botão mágico..." Apertou o botão. Nada. Close do rosto da atriz, em pânico. Então, enquanto ela gaguejava bobagens, ouviu-se um pé-de-cabra abrindo a porta à força. Neste instante, ela virou-se, apertou o botão e, como o amado que retorna de alguma cruzada longínqua, a porta da geladeira desabou em seus braços. No dia seguinte, a imprensa deu grande destaque para o anúncio. Sobre a peça, nem uma palavra.
Hoje o correio me trouxe o obituário de Betty Furness. Um dia gélido de abril. Vento e chuva. O veterinário acaba de me comunicar que meu gato está com câncer de pele nas duas orelhas. Tristeza geral. Ralph Ellison também morreu. Isto tem acontecido com uma frequência assustadora sempre que menciono alguém neste texto. Espero não ter matado Allen Ginsberg.
"Dark Possession" foi considerada um sucesso, e escrevi umas duas dúzias de peças nos dois anos que se seguiram. Pela primeira vez, tive dinheiro suficiente para reformar Edgewater. Além disso, fui riscado da lista de romancistas de verdade. Talvez eu tivesse conseguido um certo prestígio melancólico se houvesse fracassado na televisão, mas o sucesso era sinal de uma falha fundamental.
Além de escrever peças novas, também adaptei dois contos de Faulkner, "Barn Burning" e "Smoke". Eu conhecia Faulkner por alto. Após uma de suas peças, esbarramo-nos na esquina da 5ª avenida com a rua 47. Um homenzinho elegante, com um paletó de tweed; ele gostava de conversar sobre parentes comigo, já que os Gore moravam bem perto de sua cidadezinha de origem, Oxford. Ao que parecia, minha tia avó Mary Gore Wyatt lhe havia ensinado latim -ou, ao menos, havia tentado ensinar.
"Não tenho televisão", disse ele, com seus modos aristocráticos, "mas há pessoas na minha família que têm, e elas me disseram que gostaram muito da peça. Também eu escrevi uma peça para televisão, não muito tempo atrás, mas acho que não ficou muito boa; pelo menos foi o que me disseram. Nunca assisto televisão". Quando lhe disse que eu estava indo para Hollywood, tendo assinado um contrato com a MGM, ele fez cara feia. "É, eles pagam muito bem, e a gente tem que ganhar a vida, mas aconselho você a nunca levar o cinema a sério. Não vale a pena. Scott Fitzgerald cometeu este equívoco, e foi péssimo para ele. Vá e faça o serviço; depois volte para casa e escreva o que você devia estar escrevendo." Para um homem notoriamente taciturno, Faulkner até que conversou bastante comigo nas poucas ocasiões em que nos encontramos.
Infelizmente, acabei levando o cinema a sério, e ainda que a experiência não tenha sido péssima para mim, ela pôs à prova meu autocontrole. Na televisão e na Broadway, o escritor era sempre, como sempre é, o auteur, para usar o termo francês que a "Cahiers du Cinéma" utiliza para se referir ao diretor. Mas, para mim, naquele tempo, o diretor era apenas um técnico contratado para servir o texto e seu autor, enquanto em Hollywood, mesmo 40 anos atrás, o escritor e o diretor ambos eram secundários em relação ao produtor.

NOTA
1. "The Best Man": filme adaptado da peça homônima de Vidal, exibido no Brasil com o título de "Vassalos da Ambição"

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