São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Chute no saco

GILBERTO DIMENSTEIN

De cada mil jovens americanos, cem recebem anualmente um soco, chute ou até mesmo facada em sua genitália. A novidade: 40% das agressões são provocadas por garotas que, imaginam os pesquisadores, se defenderiam de ataques sexuais.
Compreensível essa guerra. Afinal, metade dos jovens americanos considera "aceitável" o sexo forçado se já tiverem gasto "muito dinheiro" com sua namorada. Entre universitários, 35% admitem que, sob certas circunstâncias e desde que não implicasse risco de punição, cometeriam o estupro.
Divulgados pela Associação Médica Americana (AMA), esses dados fortalecem minha suspeita de que os Estados Unidos são um país sexualmente doente -doente e violento.
As estatísticas são reflexo, de um lado, do desrespeito masculino que perdura aqui como, óbvio, aí. Mas, de outro, do excesso de moralismo numa sociedade que mercantilizou a sexualidade, resultando no casamento da hipocrisia com a obsessão. Confundida com agressão, a sedução ganhou o status de crime. "Excesso de moralismo é uma ótima fonte de renda", afirma o psicanalista Contardo Calligari.
Ao concluir a leitura deste parágrafo, já terão passados 45 segundos necessários para que pelo menos uma mulher, provavelmente menor de 18 anos, sofra algum tipo de agressão sexual nos Estados Unidos. Não de um estranho, mas de um amigo, namorado, marido ou familiar.
Segundo a Ama, os Estados Unidos estão contaminados por uma "uma silenciosa epidemia de violência". Silenciosa porque, na maioria das vezes, a vítima se cala.
Num ritmo crescente, 700 mil mulheres enfrentariam ataques sexuais por ano. "É o crime mais cresce no país", sustenta Lonnie Bristow, presidente da Ama.
É uma agressão a cada 45 segundos praticada num país que se apresenta ao planeta como exemplo de civilização. Uma civilização reverenciada servilmente por legiões de brasileiros de classe alta e média, para os quais as filas do consulado são mais ultrajantes do que as filas nos prontos-socorros públicos.

O Brasil forjou na semana passada um dramático símbolo da epidemia da violência e da impunidade. No Palácio do Alvorada, terça-feira, o Movimento Nacional de Meninos de Rua ganhou um Prêmio de Direitos Humanos. Poucas horas antes, em Recife, dois de seus líderes eram assassinados -mais dois entre os 179 assassinados em Pernambuco apenas neste ano.

Por isso, foi um extraordinário marco a marcha no Rio, onde, pela primeira vez, a politização da violência ganhou ares populares. Mesquinho e subdesenvolvido restringir o debate ao número de participantes. Mais importante, muito mais, foi o debate que suscitou e a sensação de que o combate ao crime não é apenas um problema oficial.

Passei três dias em Brasília e notei como o tema reeleição presidencial, tão badalado até poucas semanas, caiu da moda. Natural.
Somem-se ao barulho em torno do Sivam que abateu o primeiro escalão da República, agora o dossiê cor-de-rosa encontrado no Banco Econômico, trazendo mais uma vez incômodos rumores sobre financiamento de campanha atingindo áreas sensíveis do ministério e no Congresso.
Sérgio Motta lança José Serra para a Prefeitura de São Paulo. Na sua precipitação, ele arranha a força do Ministério do Planejamento, derrotado na briga contra os rombos orçamentários. As perspectivas de crescimentos do próximo ano são insuficientes para atender a demanda de novos empregos.
FHC está aprendendo, na prática, uma velha lição: na política, os amigos são mais perigosos do que os inimigos.

Numa Brasília, onde a malícia e maldade são permanente combustível, Sérgio Motta cutucou pelos bastidores a suspeita de que, na verdade, Fernando Henrique Cardoso gostaria de ver Serra disputando a prefeitura -o que lhe daria uma distância de mais de mil quilômetros do ministério.

A sorte do governo é que estamos nos aproximando do Natal e, muito mais importante, a inflação está baixa.

Reconhecimento: Paulo Renato de Souza me expôs seu plano para Educação, priorizando o ensino básico. Se conseguir realizar seu trabalho, vai ser ainda gigantescamente insuficiente para as exigências de uma economia globalizada -mas será um avanço.

As universidades brasileiras devem copiar o exemplo americano, cobrando mensalidades, vendendo serviços e caçando apoios privados. Injusto e desumano sacrificar o ensino básico para subsidiar nossos filhos de classe média ou alta. Mais injusto porque financia professores que se aposentam com idade de jogador de futebol.

Mais uma pancada moral no Brasil: amanhã vai ser divulgado em todo o mundo (em São Paulo no sindicato dos jornalistas) documento do Unicef sobre a situação mundial da infância. Irritante ali não é apenas nossa posição no ranking; é que perdemos para países muito mais pobres.

Um dado é especialmente notável nesse relatório. Estamos muito abaixo do Sri Lanka, no sul da Ásia, onde a renda por habitante é de míseros US$ 600 e a mortalidade infantil cinco vezes menor do que a brasileira. Mais: há 11 anos sofrem uma guerra civil.
Uma pequena sugestão da coluna: ao invés de o Congresso enviar suas legiões de parlamentares para viagens a países desenvolvidos, muitas vezes inúteis, deveria dar prioridade a países pobres que encontraram boas e baratas soluções contra a miséria.

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