São Paulo, terça-feira, 12 de dezembro de 1995
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A fonte dos erros

JANIO DE FREITAS

A cada dia revela-se mais uma impropriedade ética ou técnica na condução do Sivam, mas, apesar dessa corrente ininterrupta e de gravidade crescente, nenhum de tais fatos notórios tem a importância daquele que se mantém mais ausente do noticiário e dos comentários. E que, sobre ser o de maior relevância, tem ainda a responsabilidade de haver dado origem a todo o problema político e institucional decorrente do Sivam.
O projeto resulta da combinação de duas forças de pressão, uma interna e outra externa. A primeira é a idéia militar de que a Amazônia corre o perigo, a médio ou longo prazo, de algum tipo de intervenção internacional, com a consequente redução da soberania brasileira sobre o território amazônico. A preocupação não se dirige aos países limítrofes, todos detentores de extensões da Amazônia e, quando muito, apenas possíveis portas de entrada mais fáceis para uma eventual intromissão. Organismos internacionais, incluindo certas subdivisões da ONU, e ambições prepotentes de setores dos Estados Unidos constituem a ameaça cogitada. Daí as características militares acrescentadas ao que seria apenas o complemento, com a incorporação da Amazônia, do dispositivo nacional de proteção ao vôo.
A pressão externa veio do governo americano. E como, nos Estados Unidos, política externa e interesses comerciais não se dissociam, desde o início a pressão condicionou vários aspectos das relações bilaterais à contratação de empresas americanas para a montagem do Sivam. À primeira vista, haveria aí uma contradição americana, ao proporcionar um sistema defensivo para o território que supostamente ambicionaria; e outra do pensamento militar brasileiro, ao montar uma defesa com segredos conhecidos internacionalmente. A contradição seria, porém, valiosa vantagem. A brasileira, confiam os militares que a parte do projeto só conhecida por eles -o que ignora a riqueza e a eficiência da espionagem- tornaria inútil o conhecimento dos segredos restantes.
Coincididas as pressões da força interna mais influente e da força externa mais poderosa, deu-se o erro mais importante e menos lembrado: o compromisso do governo brasileiro com o governo americano, no sentido de realizar o projeto segundo as peculiaridades pretendidas pelas pressões internas e externas. Os primeiros passos do compromisso foram dados no governo Itamar Franco; Fernando Henrique reiterou-o, e desde a posse o tem levado às últimas consequências. Lembre-se, como pormenor comprovante do compromisso, o inusitado telefonema de Fernando Henrique a Bill Clinton, para informar que estava formalizada a entrega do Sivam à empresa americana Raytheon.
O erro importante não está, é claro, no compromisso em si. Está na sua desconsideração por outros compromissos. E não foi um erro isolado, sem precedentes. Fez parte da longa série que vem de uma das piores deformações deixadas pelo regime militar. É a concepção de poder superior, senão mesmo absoluto, que ficou aderida à Presidência. Quando Fernando Henrique diz, e já o fez várias vezes, que irá ao povo dizer que o governo está cumprindo sua parte nas reformas e o Congresso não, o que está manifesta é a concepção de que o Legislativo não é um Poder independente e equivalente ao Executivo, mas a ele submisso para formalizar, apenas isso, as intenções governamentais. E como o Congresso muito mais estimula do que contesta a concepção deformada, mais a Presidência a reproduz nos fatos.
Foi isso mesmo que se passou nos primórdios do projeto Sivam. Nenhum tipo de compromisso externo, não importa o quanto informal, pode ser assumido sem o prévio respeito às normas constitucionais e legais. No caso, sem que houvesse a apreciação do Congresso nos tantos aspectos do projeto que requerem a palavra do Legislativo.
O resultado do erro é que, primeiro, foi necessário adotar procedimentos à margem da lei e da ética, para realizar o Sivam segundo os entendimentos inadequados. E agora Fernando Henrique vê-se na contingência de defender o indefensável.
O Sivam é, do princípio até hoje, um bom retrato do estágio em que ainda está a democracia constitucional brasileira. Tão mais brasileira do que constitucional.

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