São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 1995
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O abc da indignação

GILBERTO DIMENSTEIN

Hoje vou dar a cara para bater. Exponho uma reflexão iniciada quando morava em Brasília, amadurecida nos EUA e atiçada, agora, pelos casos Sivam e pasta cor-de-rosa. O Brasil não sabe priorizar sua indignação -o tamanho da fúria contra a bandalheira pública é mais um ingrediente da desinformação nacional.
Viver aqui, onde a agenda nacional está mais encaixada nos desafios do próximo milênio (educação e reciclagem profissional, por exemplo), reforçou ainda mais minha sensação de desolamento com a indigência da agenda brasileira.
O Brasil tem uma extraordinária capacidade de perder tempo, deslumbrar-se com o show da política, no qual a moralidade oferece os melhores espetáculos, e postergar o combate às desigualdades sociais.
Discussões vitais, como o massacre diário contra a cidadania e os desperdícios de verbas públicas -colapso das escolas, dos hospitais, do Judiciário e da polícia e o impacto tecnológico no nível de emprego-, são muitíssimo mais graves do que a corrupção. Geram, entretanto, menor reação popular.
Aviso aos imbecilóides que, a esta altura, estão prestes a desqualificar o raciocínio com acusações de conivência oficial: óbvio que todas as suspeitas de roubalheira devem ser investigadas, e os responsáveis, punidos. Goste ou não o presidente Fernando Henrique Cardoso, a imprensa cumpre seu papel.
O projeto Sivam custa R$ 1,4 bilhão e desse gigantesco valor, supostamente, é estimulado e com razão o zelo público. Mas comparemos: o Ministério da Educação informa que, por incompetência, corrupção, descaso, o ensino básico brasileiro joga fora anualmente R$ 2,1 bilhões, apenas por causa de repetência e evasão.
Em dois anos de mazelas nas escolas, temos, portanto, três projetos Sivam. Só a desinformação explica por que o trabalhador de baixa renda, obrigado a matricular o filho num estabelecimento público, não berra. Assim como a desinformação explica a passividade dos dirigentes sindicais.
Claro que se deve vasculhar o relacionamento entre empresas e poder público, uma das fontes de promiscuidade da política, indicado pela pasta cor-de-rosa. O cidadão tem o direito de saber se o fato de os presidentes da Câmara, do Senado, o principal líder do PFL (ACM) e o ministro do Planejamento aparecerem em listas de simpatias de banqueiros implica a mistura entre interesses públicos e privados.
Muito mais grave, entretanto, é o Brasil exibir indicadores sociais muito piores do que nações várias vezes mais pobres -a exemplo do que mais uma vez revelou esta semana relatório da ONU sobre a situação mundial da infância. Perdemos não apenas para países miseráveis, mas alguns deles enrascados em guerras civis.
Números do descaso social como esses são sintoma de que, devido à incompetência e descaso de homens públicos, há mais gente adoecendo, tornando-se paralisada física e mentalmente, ou morrendo porque homens públicos não cumprem sua função.
Diante do crime de se morrer de desnutrição num país com tanta terra fértil, o resto -inclusive a bandalheira- está, pelo menos na minha escala de valores, em segundo plano.

Para ser justo. Cito cinco bons exemplos empresariais e, mais uma vez, dou a cara para bater aos imbecilóides.
1) A campanha da W/Brasil patrocinada pela Fundação Odebrecht, enfatizando a importância do ensino básico;
2) O estímulo financeiro do Banco Itaú (R$ 100 mil) a organizações não-governamentais que ajudam a educação pública;
3) As escolas mantidas pela Fundação Bradesco;
4) A adoção de escolas pela Natura e pela Câmara Brasil-Estados Unidos de Comércio;
5) O acordo de sindicatos de bancários e bancos para educar e dar emprego aos meninos de rua da praça da Sé, em São Paulo.

Uma lição para Antônio Carlos Magalhães, que tem o costume de ameaçar seus adversários com dossiês, agora na lista que estava no Banco Central: não faça do dossiê uma arma, a vítima pode ser você.

Na coluna passada, publiquei nota afirmando que as faculdades brasileiras deveriam copiar o ensino superior dos EUA: cobrar mensalidade, vender serviços e caçar apoios privados. Recebi protestos pelo correio eletrônico, alegando que, com essas medidas, as faculdades seriam ainda menos acessíveis aos mais pobres.
Para garantir esse acesso, governo e empresas privadas deveriam fornecer bolsas ou empréstimos.

Sobre a crítica da aposentadoria dos professores universitários, Evlyn Leão de Moraes protesta: "Já passou pela sua cabeça que um professor universitário se aposenta por puro instinto de sobrevivência?".

Depois do politicamente correto e do sexualmente correto, surge nos EUA o "esteticamente correto" -os gordos americanos estão ganhando inesperados direitos.
Um obeso foi demitido, recorreu e ganhou indenização de US$ 1 milhão de sua antiga empresa (Kragen Auto Parts), em Phoenix, no Arizona. Isso porque a lei protege pessoas com "deficiência", e o advogado convenceu o júri de que seu cliente foi demitido por causa de seu peso. A obesidade, por ser provocada em parte por herança genética, foi considerada uma deficiência.

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