São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 1995
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Terra de ninguém

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA - Vivemos numa época em que nem às vacas e às éguas é dado engravidar ao acaso. Escolhem-se para a cruza os melhores touros, os potros mais garbosos.
Há criadores que, para assegurar a qualidade genética dos filhotes, chegam mesmo a optar pela inseminação artificial. Levam ao útero da fêmea apenas o sêmen previamente selecionado.
Pois bem. Alguns deputados estão querendo impor às mulheres um tratamento de subzebu. O veterinário mais cruel não desejaria para uma puro-sangue o futuro que certos deputados querem impingir à mulher brasileira.
Projeto do deputado Severino Cavalcanti (PPB-PE) propõe o fim dos dois únicos tipos de aborto previstos em lei: quando a gravidez decorre de estupro ou quando há risco de vida para a gestante.
A aprovação da proposta significaria um enorme passo atrás. Um recuo de 55 anos na história das conquistas femininas no Brasil. O tema volta a ser debatido hoje, em uma comissão da Câmara.
Não falarei aos deputados sobre a hediondez do projeto que analisam. Não, não. Deixarei que uma mulher, Joana Leal Lima, 41, fale por mim. Violentada há três anos, ela ficou grávida do estuprador. E, amparada na lei, praticou o aborto.
"Não acredito que alguém possa não ver o desespero de uma mulher que carrega dentro dela a violência do estupro", disse Joana, em entrevista à "Veja" desta semana. Há deputados que não vêem.
Hélio Bicudo (PT-SP) conseguiu atear mais insensatez à fogueira de sandices que arde na Câmara. Propôs que a mulher violada gere o filho do estupro e depois o entregue aos cuidados do Estado. Deu forma ao que chamei, em comentário anterior, de Estuprobrás.
A pretexto de assegurar vida ao feto, propõe-se a morte do direito da mulher à gerência do próprio corpo. Pessoas como Marta Suplicy (PT-SP), defensoras da legalização plena do aborto, exalam inconformismo.
De fato, é estranho o nosso país. Seleciona-se livremente o sêmen que fecundará óvulos de vacas e éguas. E tenta-se impedir que a mulher escolha o filho que deseja ter, transformando seu útero em terra de ninguém.

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