São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 1995
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Heróis de romance viram gente de verdade

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Passei um dia inteiro me regalando e me exasperando com a leitura de um pequeno livro intitulado "Exercícios de Estilo", de Raymond Queneau. A obra em si, isto é, a experiência de Queneau, é uma das mais fascinantes aventuras literárias do século. Possuo dela a edição Gallimard de 1947 e foi com prazer que peguei agora a versão brasileira (Imago) com introdução e posfácio de Luiz Rezende. Queneau (1903-1976) que ficou famoso com esses "Exercícios" e com o romance, que virou filme de Louis Malle, "Zazie no metrô", não só foi companheiro de Prévert como passou a influenciar escritores como Calvino e Eco e é até hoje admirado por John Updike. Teve, além disso, a sorte de encontrar agora em Luiz Rezende um entusiasta de sua obra que é conhecedor de português e de linguística.
Mas logo a seguir pergunto: Luiz Rezende é também tradutor? É confiável? Ou não se dará o caso de que seu próprio entusiasmo e sufocante excesso de zelo o leva às vezes como tradutor a querer fazer obra paralela? Na introdução aos "Exercícios" Rezende começa por lembrar ao leitor o que levou Queneau ao seu fascinante trabalho: "Ao ouvir as fugas de Bach em concerto, lá pelos anos 30, Raymond Queneau teve a idéia de criar um equivalente literário, constituído por uma série de variações em torno de um tema bem simples. (...) pôs-se a escrever os primeiros exercícios em torno de uma discussão entre dois passageiros a bordo de um ônibus". Entre os que se encontram de pé no ônibus há um jovem esquisito, pescoço comprido, chapéu extravagante, que reclama sem razão dos apertos que sofre de um vizinho também de pé. Mas em seguida encontra lugar, se senta, e só sabemos dele de novo quando salta na estação Saint-Lazare e encontra um amigo que lhe critica o sobretudo. Pronto. Fim da história, que Queneau nos conta 99 vezes, em 99 variações. Informa Rezende: "Inspirado pelo convívio encontrado na Grécia entre dois registros de linguagem, com primazia do demótico sobre a língua pura, Queneau vinha tentando a defesa e ilustração do francês falado desde o começo dos anos 30, e chegou a propugnar um neofrancês".
Acontece que, com a presente versão dos 99 textos, Rezende parece com frequência menos interessado em nos fazer entrar no que Queneau inventou do que em realizar ele, tradutor, algo parecido com o português do Brasil. Os textos de Queneau são de absoluta banalidade e permanente fascínio linguístico. E o tradutor, fascinado, se põe a colaborar. Para ilustrar o que digo não tenho remédio que não seja citar, do francês, amostras do texto original, para comparar com a tradução. O exemplo que é talvez o mais extraordinário vem logo na quarta "variação" de Queneau, intitulada "Métaphoriquement", curtinha, descrevendo o bom tempo que faz em Paris e o incidente do ônibus: "Au centre du jour, jeté dans le tas des sardines voyageuses d'un coléoptère à l'abdomen blanchâtre"... Em português ficou assim: "O astro apolíneo parecia ter imobilizado seu tão célere curso em zenital posição e dardejava implacável no meridião escaldante como as dunas de Copacabana, exasperando o sufoco da massa compacta num coleóptero de alvo abdômen, tal sardinhas em lata"... Eu diria que é metáfora demais incluir o astro apolíneo e as dunas de Copacabana no trecho de Paris percorrido por um ônibus que vai deixar passageiro na Gare Saint-Lazare.
A outra adaptação de Rezende que me parece injustificável, vem lá para o fim do pequeno volume. Na variação "Paysan", Queneau aborda seu único e maníaco episódio tal como visto por um camponês, que usa o mais demótico-caipira francês que se possa imaginar: "J'avions pas de ptits bouts de papier avec um numéro dessus"... A tradução, intitulada "Sertanejo", vem em puro Riobaldo Guimarães Rosa: "Nonada. Ônibus que o senhor viu foi a gosto não. Têm de morar longe daqui, na Contrescarpa, Campo Retado, constante viagem e ainda vão fuzuando nas piores esfregas e com ânsias de se travarem nos viventes". A variação "Paysan" acaba com as seguintes palavras, em francês demótico-camponês, ou coisa parecida: "Li disait, l'autt feignant dson espèce, l'i disait: 'Tu dvrais tfaire mett sbouton-là un ti peu plus haut, ça srait ben pluss chouette', Voilà cqui lui disait au grand flandrin, láutt feignant dson espèce". Em português-brasileiro fica mais ou menos assim: "Lhe dizia, o outro malandro de sua laia, dizia a ele assim: 'Tu devia arranjar quem te pregasse esse botão mais alto que ficava muito mais bacana'. Era isso que falava ao malandrão o outro da mesma laia". No português roseano de Luiz Rezende (a edição de "Exercícios de Estilo da Imago não é bilíngue) o trecho resulta no seguinte: "Pois essezinho está com um compadre que alumia o entendimento dele, feito mostrando o que é: capote sem préstimo por carência de botão. (...) Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Eh pois, empós, o resto o senhor prove: vem o são, vem a mão, vem o cão, vem o botão. Nonada. O diabo não há! E o que eu digo, se for... Existe é ônibus. E botão. Travessia".
No letrado e informativo ensaio que publica sobre Queneau e sobre sua tradução, no fim do livro, Luiz Rezende escreve: "Como vocês podem suspeitar depois do que leram, preferi reter o princípio do chacoalho que me ater a um temeroso respeito da letra, cujo resultado seria a mútua esterilização". Acho que o princípio adotado foi levado longe demais. De qualquer forma, considero positivo o fato de termos em português os "Exercícios de Estilo".
O Vôo de Ícaro
Para tornar Queneau ampla e merecidamente conhecido no Brasil, acho que se deveria traduzir dele um romance simples e delicioso chamado "Le Vol d'Icare", que em francês tanto quer dizer o vôo como o roubo de Ícaro. Superficialmente ingênuo e cômico o livro prevê o tempo em que a ficção, a invenção literária, se tornará talvez impossível porque no nosso futuro de total liberdade nenhum personagem imaginário vai aceitar a escravidão às mãos do escritor que o criou. Os personagens vão fugir, antes de prontos e aprisionados no livro, e inventar para si mesmos vida própria, livre. Eu diria, aliás, que a mensagem oculta de Queneau em "O Vôo de Ícaro" (que no fim vôa, de fato, atado a uma pipa, a um papagaio que empinou no céu) é que talvez essa fuga já tenha ocorrido no tempo da criação do homem. Adão e Eva não terão sido expulsos do paraíso em que um Deus exigente os ia criando e educando aos poucos: o casal fugiu do tédio paradisíaco antes de acabado. Isso explicaria por que é que a humanidade ficou para sempre tão insatisfatória, incompleta.
Em "O Vôo de Ícaro" um romancista, Hubert, perde as páginas em que estava criando seu personagem, Ícaro, e não consegue continuar a história. Hubert se sente tão incapaz de prosseguir sem Ícaro, que contrata um detetive para encontrá-lo. Além de incompetente e trapalhão o detetive se vê assediado por outros romancistas, cujos personagens também fugiram de seus escritores-criadores, e, soltos em Paris, já formam enredos de vida entre si próprios e não querem voltar de forma alguma às páginas em que eram mera ficção.
Não vale a pena traduzir uma delícia dessas? Atenção Nova Fronteira, Companhia das Letras, Nova Alexandria, Francisco Alves.

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